Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Cada um sabe a dor e a delícia de torcer pelo Galo

Até nos momentos de alegria, o atleticano sofre

Foto: Bruno Sousa / Atlético
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Sou atleticana. Graças a Deus. Não de nascença, como ocorre em muitas famílias, mas por interferência da dona Joana, uma torcedora fanática do Clube Atlético Mineiro que durante alguns anos cuidou de mim e dos meus irmãos enquanto meus pais estavam no trabalho.

Que ninguém leia este trecho do texto. Faço aqui uma confissão que jamais partilhei, ainda mais publicamente. Eu me recordo que quando eu tinha 5, 6 anos de idade, influenciada pelo meu irmão que é cruzeirense, em reverência ao time azul celeste, bradei: “Zerooo!!!”. Após cometer essa blasfêmia, fui imediatamente repreendida pela saudosa dona Joana: “Zero, não! Cruzeiro é feio! O Galo que é bonito!”. Sorte a minha. Naquele momento, literalmente virei a casaca e, assim como a Miriam, minha irmã, passei a defender as cores alvinegras.

É bem verdade que ao fazer de mim uma atleticana de primeira linhagem, dona Joana me impôs muito sofrimento. Só eu sei, só nós sabemos o que foi torcer pelo primeiro campeão brasileiro na década de 1990. Depois de ostentar em seu elenco estrelas de alto quilate, como Dadá Maravilha, Cerezo, Paulo Isidoro, Éder Aleixo e o nosso querido rei – Reinaldo –, vi de perto, senti na pele a tristeza de acompanhar elencos sem qualquer competitividade, sem expressão, muito aquém dos plantéis de anos anteriores que, embora não tenham levantado títulos de expressão, jogavam um futebol que encantava todo o País. Em alguns momentos da nossa história, o Galo foi uma espécie de sucursal da Seleção Brasileira.

Como se não bastassem as derrotas amargas e as desclassificações precoces em competições nacionais e internacionais, eu também vi e senti na pele o sucesso, os anos de glória do Cruzeiro, nosso maior rival. Vê-los conquistando tantos títulos era uma espécie de morte em vida, mas como diz um trecho do nosso hino: “Clube Atlético Mineiro, uma vez até morrer”.

Apesar de tantas derrotas, de tanto desalento, jamais me furtei de honrar o ensinamento transmitido com tanto carinho pela dona Joana, quando eu ainda era uma criança que nada entendia sobre futebol. Acho até que não tenho o direito de lamentar. Ao Clube Atlético Mineiro devo o fato de ele ter sido o maior elo entre a Miriam, minha irmã, e eu. Se éramos diferentes em tudo, absolutamente tudo, a paixão pelo Galo nos unia fortemente. Foi ela quem me levou ao Mineirão pela primeira vez, em 1999, quando saímos com uma vitória por 2 x 0 sobre o Santos.

Essa cena se repetiu muitas vezes. Eu sentia orgulho de ir ao Mineirão com a minha irmã. Para desespero da minha mãe, estávamos sempre lá. Era a nossa religião, a nossa missa de domingo. Para ela, era difícil conceber o fato de duas garotas frequentarem um ambiente que chegava a receber 100 mil pessoas, extremamente masculino. Em algumas ocasiões, dona Nelita dizia: “Vocês parecem dois meninos!” (risos…).

Infelizmente, em 2013, quando o sonho e a redenção vieram com os pés, com a genialidade de Ronaldinho Gaúcho e as defesas milagrosas do goleiro Victor, um câncer impediu que a Miriam fosse minha parceira nos jogos em que sofremos muito, mas, finalmente, depois de um jejum de 42 anos sem grandes conquistas, nos sagramos campeões. Miriam nos deixou 15 dias antes de o Réver, capitão do time, erguer a taça de campeão da Taça Libertadores da América.

No ano seguinte, como de praxe, com muito sofrimento, finalmente comemoramos um título da Copa do Brasil. Mas como o trauma e a dor são uma constante em nossas vidas, em 2016, vimos a chance do bicampeonato escapar, quando perdemos para o Grêmio na decisão disputada dias após a tragédia que matou 71 pessoas no avião da Chapecoense.

Nesses anos todos, não há desejo maior entre nós do que ganhar o Brasileiro, que torcedores como eu, nascidos no pós-1971, jamais tiveram a oportunidade de ver. Ele não veio em 1977, não veio em 1980, em um dos maiores escândalos da arbitragem do futebol brasileiro… também não chegou em 1999, quando ficamos em segundo lugar, ao perdermos a decisão para o Corinthians. A taça de campeão brasileiro, levantada uma única vez pelo time então treinado pelo mestre Telê Santana, também escapou em 2012, em 2015 e no ano passado com a equipe comandada pelo técnico Jorge Sampaoli.

No momento em que 50 anos nos separam da nossa primeira conquista, toda imprensa já dá como certo o fim do longo jejum do Galo. A tabela, o clima que está no ar, a maneira como o time liderado por Cuca tem atuado, com o futebol brilhante de Hulk, Jair, Zaracho, Nacho Fernandes, Luan Silva e tantos outros… tudo leva a crer que erguer o caneco tão esperado é uma questão de tempo. Mas nada disso é suficiente para finalmente soltarmos o grito de campeão, preso, entalado na garganta. A ansiedade nos consome. O trauma e o passado de tantos reveses não deixam.

Fica uma lição. Até nos momentos de alegria, o atleticano sofre. Por isso, parafraseando Caetano Veloso, sempre digo: Cada um sabe a dor e a delícia de torcer pelo Galo.

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