Opinião

O “zeitgeist” e a compreensão da atualidade do Brasil na era Bolsonaro

Aos brasileiros, caberá a dura tarefa de reconquistar a democracia e resgatar a diplomacia do lixo e, então, reconstruir o País

Manifestantes pró-Bolsonaro em frente ao Congresso Nacional em Brasília (Foto: EVARISTO SA / AFP)
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Talvez possamos discordar de Caetano Veloso quando, na música, diz que só é possível filosofar em alemão.

Se nos restringirmos ao século XX, o maior filósofo daquele século, Ludwig Wittgenstein, austríaco, filosofou, sim, em alemão; bem como a maior economista política, Rosa Luxemburgo, polonesa de nascimento, que, além do polonês, também dominava o alemão e o russo.

Entretanto, o maior filósofo político do século XX, Antônio Gramsci, era italiano, sardo, mais precisamente.

Isso não invalida que os alemães tenham uma capacidade de síntese única.

Com efeito, a filosofia e a psicanálise emprestam daquele idioma expressões que, traduzidas a outros idiomas, perderiam abrangência conceitual.

Um exemplo, a expressão “zeitgeist”. Literalmente, traduz-se por “espírito do tempo”. Conceito perfeitamente autoexplicativo.

Após assistir “Coringa”, na semana passada, me deparei, no dia 31, com comerciários e comerciárias pintados à moda, no aeroporto de Guarulhos. A tristeza estampada nos rostos violentados pela hegemonia cultural do império era a mesma do “Coringa”, obrigados a usar a grotesca “persona”, para a qual nada recebem; demonstração perfeita do “zeitgeist” do país dominado, subjugado, reduzido à condição de colônia, em que mentes e corpos pertencem aos dominadores.

Nesse sentido, cabe observar como o império entregou o país ao crime organizado. Assassinatos são acobertados; investigações entregues a comparsas; a justiça já não pode ser chamada por esse nome.

Pior, as notícias falsas são precedidas das religiões falsas, que já se apossaram de cinemas, teatros, jornais e redes de televisão.

Mas não há mal que sempre dure: a Argentina já virou a página da vergonha. No país, uma das maiores potências agrícolas do planeta, crianças desmaiam nas escolas, por falta de alimentação escolar.

Mas a direita de lá não está envolvida em assassinatos, ao contrário da de cá. Lá, a direita mantém um mínimo de decência e faz a transição para o novo governo de forma democrática.

Por aqui, ameaças de aprofundamento da ditadura, feitas pela família miliciana e pelo general espião-mor. A vergonha nos cobre aos olhos do mundo. A um tal ponto que o candidato da direita uruguaia rejeitou publicamente o apoio do presidente ilegítimo daqui. O embaixador em Montevidéu foi convocado a dar explicações, demonstrando o pequeno país que princípios como o da não-intervenção são inegociáveis.

Entretanto, o embaixador em Buenos Aires também foi convocado à chancelaria argentina, para ouvir o desagrado formal do governo com comparações desairosas feitas por um dos filhos do ilegítimo, tentando humilhar o filho do presidente eleito da Argentina.

O golpe nos levou a sermos um verdadeiro lixo da diplomacia, do convívio internacional, do respeito mais primário entre as nações.

Por outro lado, nos obriga a pensarmos a pátria grande: o México vai de vento em popa; a Nicarágua conseguiu evitar o golpe e se desenvolve; a Venezuela passou verdadeira rasteira no império e se consolida, infringindo derrota histórica a Trump. De fato, amplia a parceria com a Rússia no campo da extração de petróleo e gás, naquela que o império considerava sua “zona de influência” (leia-se quintal, para os republicanos).

A vitória das forças democráticas e anti-imperialistas na Argentina vai nesse sentido.

Com um corpo diplomático mais coeso e politizado do que o brasileiro, o San Martin terá todas as condições de ocupar os espaços que a desastrosa diplomacia ilegítima está deixando.

Com isso, as exportações argentinas de produtos primários – notadamente carne e soja – deverão ampliar-se, acomodando os setores exportadores mais reacionários, com ganhos evidentes para a política do país.

Ademais, o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, já anunciou que a cultura voltará a ter ministério, demonstrando que, a exemplo do vice-presidente da Bolívia, leu Gramsci e entendeu que a cultura é o centro da política.

O México, por sua vez, poderá ocupar os terrenos que o Brasil vem perdendo na exportação de bens industrializados, em razão da não-diplomacia atual.

Aos brasileiros, caberá a dura tarefa de reconquistar a democracia e, então, reconstruir o país, dilacerado por um golpe de estado promovido pelo império para acaparar as riquezas nacionais.

O “zeitgeist” também permite associar outros conceitos à compreensão da atualidade: a geofilia, por exemplo. Trata-se da simpatia ou antipatia que sentimos por um local.

Por exemplo, sempre me sinto mal quando passo em frente de uma loja daquela rede golpista, cujos prédios imitam de forma grotesca a Casa Branca e, muitos, com réplica horrenda da Estátua da Liberdade. Sinto-me pior, porém, na Barra da Tijuca, cópia deslocada de Miami, no que aquela cidade tem de pior. Sabendo do que estamos descobrindo a cada dia sobre um certo condomínio naquele bairro, a antipatia, o horror, encontram justificação.

Mas também esses momentos pavorosos irão passar.

Os milicianos estão sendo pressionados a entregarem tudo, o mais rápido possível: pré-sal; Embraer; indústria naval; de construção civil; Eletrobras etc. Porém, na mesma proporção em que o fazem, vão ficando cada vez menos importantes para o império, até que, dado o desgaste, seja mais interessante o descarte, como papel higiênico que cumpriu o serviço sujo.

Tendo em vista a rapidez do desmonte a que estamos assistindo, aquele momento se aproxima.

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