Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

O racismo contra negros no Brasil é estrutural. Mas isso nada tem a ver com o capitalismo

A noção de estrutura, conforme o empregado e usado nesse vocabulário, parece-me carregar uma armadilha ideológica

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A controvérsia expressivamente inflamada que se arrasta por quase duas semanas em razão de texto de Antônio Risério publicado na Folha de S. Paulo, se dá, fundamentalmente, por conta da definição de um conceito: racismo. Em disputa, estão duas noções que hoje se apresentam como concorrentes: a ideia de que racismo só é racismo se for estrutural e a noção de que nenhum racismo precisa ser estrutural para se configurar como tal.

Se você faz parte do grupo que defende a primeira acepção, você certamente verá coisas no texto de Risério que quem pensa segundo a outra definição não verá. E isso nada tem a ver com gostar ou não do que escreveu o antropólogo.

Eu acompanhei e continuo acompanhando atentamente o debate em torno dessa controvérsia, principalmente nas redes, que é onde se materializa, com muita força e eficiência, a militância das políticas identitárias antirracistas. Para onde quer que se olhe, há dois argumentos centrais que definem o repúdio ao referido do texto: como já disse, um deles é a noção de que só há racismo se o racismo for estrutural. O outro é um tipo de argumento que eu definiria como o famoso “argumento carteirada”: alguém que se coloca e é reconhecido por uma coletividade como autoridade no assunto afirma que essa definição de racismo é um consenso nas Ciências Sociais.

Os dois argumentos são, no mínimo, objetivamente incorretos. O segundo certamente é uma falácia. Comecemos por ele.

Nas Ciências Sociais, a própria noção de que há um consenso sobre a definição de um conceito é uma quase impossibilidade objetiva e concreta. Quando chegamos à especificidade de um conceito histórico e teoricamente complexo como o de racismo, a alegação ganha contornos falaciosos. Não que não existam predominâncias, hegemonias e solidez na definição de conceitos nas Ciências Sociais — como em qualquer outra área do saber científico. Existem. O problema está em equivaler esse estatuto ao status de consenso. A venda dessa fictícia consensualidade, diante de sua flagrante inexistência, parece configurar apenas um expediente retórico, no qual o uso de uma alegada voz de autoridade parece estar a serviço da supressão da divergência e do debate.

O primeiro argumento passa longe de ser falacioso. Trata-se da descrição real e concreta da existência de um fenômeno. Há, sim, racismos que possuem uma dimensão estrutural, mas isso não significa que não existam racismos que não sejam estruturais. O próprio léxico parece já entregar a fragilidade dessa alegação: se precisamos qualificar o substantivo com o adjetivo “estrutural” é porque há racismos que não são estruturais. Ao contrário do que certas autoridades de movimentos identitários querem fazer crer, essa equivalência entre racismo e racismo estrutural não tem força de consenso em lugar algum, a não ser nas lógicas internas desses mesmos grupos.

O que os ativistas e pensadores das políticas identitárias antirracistas estão tentando fazer é refundar o conceito de racismo para equivalê-lo tão e somente à noção de racismo estrutural. Nada mais legítimo. Por que não? Produzir ciência no iluminismo maduro é preconizar o estatuto da falseabilidade contra as opiniões, tradições e convenções. Eu apenas divirjo frontalmente dessa noção e dessa investida. Principalmente porque, na prática, essa definição tem servido largamente para substituir atos flagrantemente racistas por definições eufemísticas que subtraem desses atos o peso que possuem. E aí racismo vira outra coisa como discriminação, injúria e por aí vai. Na minha opinião, um desserviço a uma agenda e causa que deveria ser universal e, igualmente, atenta às diferenças.

Desculpem, mas em sociedades como a brasileira, branco nenhum e nenhum não-negro sofrem o racismo que a população negra sofre. O racismo contra negros no Brasil é estrutural. Isso passa a largo da conclusão de que brancos, por exemplo, não possam ser vítimas de racismo. Se alguém chama um negro racista, como o presidente da Fundação Palmares, de branco ou de negro com “alma branca” ou de “negresco, negro por fora, branco por dentro”, desculpem de novo. Isso é racismo. Eu sou branco e não penso um vírgula sequer como Sérgio Camargo. Se você diz que ele é racista porque na essência, tem a cor da pele que eu tenho ou faz parte da mesma “raça” de que eu faço parte, isso é racismo. Isso serve para judeus, asiáticos e outras etnias. É anedótico? É pontual? Sim, é tudo isso. Equivale-se ao racismo sofrido sistematicamente por negros? Só um indigente intelectual defenderia essa falaciosa simetria. Apesar disso, continua sendo racismo, mesmo não sendo estrutural.

Mas eis que a própria noção de estrutura, conforme empregado e usado nesse vocabulário, parece-me carregar uma armadilha ideológica. Esse “estrutural” que qualifica o racismo desse conceito vem sendo adotado seguindo uma lógica de transposição dos preceitos marxianos e marxistas de estrutura, qual seja: a ideia de que as relações de opressão se dão mediante a vigência de uma ordem constituída por uma estrutura social hierárquica de relações de poder que perpetua a exploração do homem pelo homem segundo uma lógica de estratificação da sociedade em classes sociais.

Para Karl Marx, as classes eram basicamente duas: a dos capitalistas, detentores dos meios de produção, e a dos proletários, cuja força de trabalho é explorada pela classe dominante, gerando o que Marx compreendia como a mais-valia. Essa é a engrenagem do capitalismo para o filósofo alemão. Na lógica da política de identidade, parece-me que essa moldura é mantida com a substituição da classe explorada dos proletariados por um grupo constituído mediante sua identidade social. Parece-me que é exatamente daí que surge, para meu enorme espanto, posições políticas antirracistas que defendem que o racismo só será derrotado se o capitalismo também for. Trata-se de mais uma transposição que permite às velhas e tradicionais militâncias marxistas anticapitalistas embarcarem nessa jornada, mudando alguns termos, mas mantendo o propósito e o inimigo de sempre: o capitalismo. Conveniente e igualmente dogmático.

Trata-se de um devaneio curioso que não se sustenta teoricamente, muito menos empiricamente. Nem precisamos remeter a alegação ao teste das experiências anticapitalistas do Leste Europeu. Basta focar no Caribe hoje. O regime cubano é socialista, anticapitalista na essência, mas é lá mesmo em Cuba que o racismo se mantém estruturalmente há décadas, inclusive com a supressão do próprio debate público sobre o racismo na ilha com patrocínio de seu regime ditatorial.

Creio que não é à toa que o próprio conceito de “neoliberalismo” vai aparecendo com cada vez mais força nesses discursos para explicar o racismo e propor soluções. É só a velha militância anticapitalista com novos adereços e outras roupagens. Mas o fato é só esse: podem tirar o capitalismo que o racismo vai continuar. O buraco é mais embaixo.

Das poucas certezas que tenho, uma delas é de que o racismo contra negros no Brasil é estrutural. E isso nada tem a ver com o capitalismo. Tem a ver com a percepção histórica, social, cultural e econômica de que negros formariam uma sub-raça, inferior às outras “raças” e constituídos por uma genética moralmente degradada. É exatamente por essa razão que sempre estarei ao lado de políticas (afirmativas, que se sejam) voltadas para combater esta que é, certamente, nossa maior mazela nacional. Mas, para tanto, não preciso refundar o conceito de racismo à minha imagem, semelhança e pretensões. Basta saber que racismo não é sinônimo de racismo estrutural.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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