Opinião
O que explica a presença da extrema-direita no segundo turno da França?
É um ‘eu acuso’ das massas desprotegidas contra o fim do estado de bem-estar social
“A guerra é uma das mais terríveis coisas deste mundo.”
Leon Tolstoi.
Mas e a guerra híbrida como acontece no Brasil?
Aqui, fica-se sem energia elétrica e a empresa só vem consertar depois de você tocar de porta em porta dos vizinhos para saber se o problema é individual ou coletivo. Ou seja, a companhia não têm qualquer controle da rede…
O descaso é grande.
O poste apagado? A empresa diz que é com a prefeitura. A prefeitura, com a empresa.
Mas a fatura, os impostos e taxas continuam sendo cobrados…
É a guerra híbrida em que o capital praticamente só tem lucros, estratosféricos, bastando comparar os serviços prestados com os valores cobrados.
A desproporção é brutal. Só um país desgovernado pode permitir a pilhagem, que é, evidentemente, instrumental e se amplia ad infinitum, no roubo do pré-sal, da entrega da BR Distribuidora, dos minérios, das terras, das madeiras, da biodiversidade, da base de Alcântara etc.
Só na pandemia, mais de 600 mil vidas ceifadas pela incúria, descaso, charlatanismo e corrupção do desgoverno.
Mas esse determinismo imperialista pode e deve ser enfrentado.
Em “Mariátegui – vida e obra”, de Leila Escorsim (editora Expressão Popular), temos um belo chamamento ao possibilismo, na análise que José Carlos Mariátegui faz da obra de Karl Marx: “cada palavra, cada ação marxista possui um acento de fé, de vontade, de condição heroica e criadora cujo impulso seria absurdo procurar num medíocre e passivo sentimento determinista.”
Mas não é só nas periferias que a guerra híbrida se apresenta e deve ser enfrentada.
Vejamos o caso da rica Europa, que tanto saqueou e continua a saquear suas ex-colônias, física e intelectualmente.
A presença da extrema-direita no segundo turno das eleições presidenciais na França é um “eu acuso” das massas desprotegidas contra o fim do estado de bem-estar social, insepulto sob a máquina de guerra híbrida da União Europeia (UE), a qual tem tanto de democrática e popular quanto a União de Bancos Suíços – ou menos.
Para desnudar o engodo, que tem mais de união de oligarcas do que de união europeia propriamente dita, basta verificar a aversão dela à garantia dos direitos mais básicos, começando pelo primeiro deles: o direito à terra.
Nesta semana em que, no Brasil, o desgoverno pretende levar a votação na Câmara a autorização para a mineração em terras indígenas, vale a pena recorrer novamente a Mariátegui, no volume citado: “não nos contentamos em reivindicar para o índio o direito à educação, à cultura, ao progresso, ao amor e ao céu. Começamos por reivindicar, categoricamente, o seu direito à terra.” Direito esse que não pode ser fracionado, relativizado, diminuído ou virtualmente suprimido, como o fará a mineração em territórios indígenas.
Como as esquerdas caíram na armadilha da guerra híbrida?
Uma das respostas pode ser dada por Leila Escorsim na obra citada: “…o revolucionário peruano não considerava o marxismo um sistema fechado e auto-suficiente, mas sim uma tradição teórica e prática em aberto, necessitando constantemente de uma viva interação com as correntes culturais contemporâneas – daí, inclusive, sua reemissão ao pragmatismo estadunidense e, especialmente, à psicanálise.”
Escorsim, em mais uma clarividente citação do jornalista e sociólogo peruano, agrega, de forma tão esclarecedora: “O que mais nítida e claramente diferencia nesta época a burguesia e o proletariado é o mito. A burguesia já não tem nenhum mito. Tornou-se incrédula, cética, niilista. Está muito envelhecido o mito liberal renascentista. O proletariado possui um mito: a revolução social – e move-se na sua direção com uma fé veemente e ativa. […] A força dos revolucionários não reside em sua ciência; reside em sua fé, em sua paixão, em sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do mito.”
A essa reflexão, Mariátegui agrega: “…não se chega à revolução somente por uma via friamente conceitual. A revolução, mais que uma ideia, é um sentimento. Mais que um conceito, é uma paixão. Para compreendê-la, é necessária uma espontânea atitude espiritual […]”.
A leitura dessas reflexões faz pensar sobre quem realmente tem sabido interpretar aquele fantástico repertório teórico. A esquerda ou a direita? No caso do Brasil e da Europa, temo que a resposta seja incomoda.
Em “Paulo Freire – vida e obra”, com organização de Ana Inês Souza (editora Expressão Popular), Miguel Arroyo aclara: “Não podemos perder a dimensão pedagógica do Partido (Gramsci), do sindicato, do movimento, sem o que não há capacidade de construir um projeto coletivo, tão pouco uma outra cultura, outra identidade popular.”
Talvez tenha sido esse o erro que nos conduziu ao fracasso e à não resistência ao golpe de estado de 2016: não termos feito formação suficiente para emancipar os consumidores, tornado-os cidadãos e cidadãs.
Por fim, para os que eventualmente acharem este texto por demais subjetivo, permito-me citar “Clarice – uma vida que se conta”, de Nádia Battella Gotlib (editora EDUSP), na belíssima biografia da nossa judia-ucraniana-brasileira Clarice Lispector: “1931 – Escreve contos que envia para a seção ‘O Diário das Crianças’ do Diário de Pernambuco, mas nenhum deles é publicado, porque, segundo futuro depoimento de Clarice, suas histórias não contam ‘fatos’, mas ‘sensações’.”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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