Opinião

A importância de indígenas na política para superar a distância entre Estado e sociedade civil

Um novo grito de independência ecoa, desta vez, vindo dos legítimos donos da terra!

Foto: Divulgação/APIB
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“Pecar não é praticar o mal; o verdadeiro pecado é não fazer o bem.”
Pier Paolo Pasolini.

Os indígenas brasileiros estão novamente mobilizados, desta feita contra o projeto de lei que visa permitir a mineração em territórios indígenas, com consequências letais para a saúde indígena, a flora e a fauna nos territórios.

Como tem ocorrido desde o golpe de Estado de 2016, o Executivo e o Legislativo atentam, mais uma vez, contra a soberania dos indígenas sobre seus próprios territórios, descumprindo, dessa forma, a Constituição Federal.

Na entrevista à imprensa que ocorreu na manhã de segunda-feira 4, no acampamento indígena montado no Eixo Monumental de Brasília, as lideranças indígenas, mulheres e homens, deram mostra de grande dignidade e visão política.

Entre outras belas formulações para seus povos, afirmaram que, caso a demarcação dos territórios indígenas continue parada, a autodemarcação será mantida, pois não abrem mão da soberania sobre os territórios, nos quais conservam-se as principais reservas naturais da humanidade, em âmbito nacional e internacional.

Mantê-los representa não apenas condição de vida para os indígenas e as indígenas, mas também para toda o planeta, pois são eles e elas os guardiões e guardiãs da biodiversidade.

Quando vemos que a Europa e os Estados Unidos da América, ao contrário, renunciam à própria soberania, entregando-a nas mãos de Marte, o deus da guerra; aquela escolha refulge ainda mais, em meio às trevas internacionais (vale notar que a Europa aumentou o orçamento militar em 24% de 2016 até o presente ano, não cabendo o falso argumento da guerra na Ucrânia). Em um único dia, a Itália aumentou o orçamento bélico em 13 bilhões de euros, acrescidos aos 25 bilhões anteriormente previstos.

Na referida entrevista, as lideranças lembraram que na cosmovisão indígena a terra não é mero objeto, mas sujeita de direitos, que já começam a ser reconhecidos, em países como a vizinha, heroica Bolívia.

Indo além, os representantes dos povos originários fizeram anúncio histórico: a disposição para disputar cargos legislativos em âmbito estadual e federal – “aldear a política”, nas palavras da líder Sônia Guajajara, pré-candidata a deputada federal, por São Paulo.

Trata-se de superar a separação – verdadeiro fosso medieval – entre Estado e sociedade civil, a qual fora exacerbada pelo neoliberalismo e até por setores de esquerda próximos das teses neoliberais.

Melhor ainda, esse movimento coincide, sincronicamente, com a decisão dos movimentos sociais de agirem no mesmo sentido, buscando ocupar os espaços públicos, valorizando-os dessa forma, em muito.

Com efeito, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra está lançando a candidatura de 35 lideranças, entre elas mulheres como Marina Santos, pelo Rio de Janeiro, e a drag queen Ruth Venceremos, pelo Distrito Federal.

Uma retomada da política, em grande estilo!

Não uma retomada covarde! Retorno em que o cacique Marcos Luidson de Araújo (Marquinhos Xukuru), eleito prefeito de Pesqueira (PE), demarcou novos parâmetros na entrevista à imprensa. Quando indagado sobre qual seria o plano B em caso de derrota das demandas indígenas, respondeu de pronto: soberania ou morte.

Que alento, neste 2022, em que os 200 anos da Independência encontram o Brasil novamente reduzido à condição de colônia.

Um novo grito de independência ecoa, desta vez, vindo dos legítimos donos da terra!

E as boas notícias não se esgotam ainda, neste mês em que comemoraremos o Dia do Índio.

Também estavam presentes no acampamento jovens advogados indígenas, que egressam das universidades, formados, e se dedicam a defender seus territórios, pais, ancestrais e culturas.

É o caso de Ivo Makuxi, jovem advogado que com apenas 31 anos fez a defesa dos territórios indígenas no Supremo Tribunal Federal (STF). O STF ainda deverá exarar sentença sobre a aberração do “marco legal”, que reduziria as reivindicações de demarcação aos territórios demarcados até 1988, um absurdo que desconsidera o fato de que a ditadura postergou as demarcações, quando não as ignorou por completo.

Conversar com Ivo traz esperança: o jovem advogado tem clara a vantagem de trocar o arco e a flecha pela caneta e o papel, como missão, dedicando a vida em defesa dos indígenas e seus territórios, em suas palavras.

Como se aprende no simples olhar e ainda mais no conversar com esses e essas lideranças indígenas! Todos nos ensinam em suas mais de 270 línguas (eu acreditava que eram “apenas” 180, mas fui atualizado por Ivo Makuxi e ri da minha ingenuidade em fiar-me nos números dos colonizadores – outra lição, óbvia, mas aprendida).

Finalmente, assistindo à entrevista em apreço, comecei a prestar atenção às belíssimas pinturas feitas com corantes naturais nas costas dos indígenas e só então me ocorreu, mais uma vez, o óbvio (que conta com tantos inimigos, como dissera o grande Nelson Rodrigues): uma pessoa não pode pintar as próprias costas, sendo, portanto, trabalho cooperativo, em que um pinta as costas do outro!

Que linda lição de elegância: vestimo-nos, adornamo-nos para o outro, a outra, a alteridade, não para nós mesmos, nosso egoísmo e narcisismo, e temos de fazê-lo, forçosamente, pelas mãos e olhos de outro/outra!

Que este acampamento nos traga muitas outras vitórias! Mas, devo confessar, as minhas, inesperadas – e por isso mais saborosas, já as ganhei.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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