Justiça

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O pelourinho da esquerda

Com os governos do PT na Bahia, desfez-se a ilusão da exclusiva responsabilidade da direita pela tragédia da violência policial

Quem realmente se coloca contra o genocídio da juventude negra? – Imagem: iStockphoto
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A questionável figura do “descobrimento” ilustra bem o recente destaque dado à política de segurança pública dos governos petistas baianos. Perplexa, a sociedade brasileira descobriu uma Bahia violenta, na contramão da mitologia da “baianidade nagô”. Na fauna política, o campo que se diz progressista e defensor da democracia espelhou o País racista e genocida em sua pior versão. Desfez-se a ilusão da exclusiva responsabilidade da direita pela tragédia da violência policial que aprofunda o racismo e inviabiliza a democracia. O PT da Bahia fez jus ao paradoxo apontado por Gilberto Gil: Que Deus entendeu de dar a primazia/Pro bem, pro mal, primeira mão na Bahia/Primeira missa, primeiro índio abatido também.

Esta Bahia violenta, que reflete o Brasil atual e projeta um sombrio futuro, é o resultado lapidado de uma política pública implementada ao longo de quase duas décadas. Encoberta pelo monopólio sudestinocêntrico da agenda política, a Bahia vivenciou uma experiência singular de ­degradação da segurança pública, capitaneada pelas cinco gestões petistas que se sucederam ao conservador carlismo. Os governadores Jaques Wagner, Rui Costa e Jerônimo Rodrigues optaram pela perversa combinação da manutenção da cultura policial autoritária herdada com a adesão incondicional à falácia da “guerra às drogas”. Adotaram a estratégia de confronto e a alta letalidade como critérios de eficiência policial, a pretexto de enfrentar as organizações criminosas, em detrimento da investigação, valorização e qualificação da atividade policial judiciária.

Essa estratégia teve como eixo o incremento e criação de unidades policiais militares especializadas em confronto e a adoção de discurso tolerante diante de evidentes abusos e ilegalidades em ações policiais denunciadas. O ápice desse comportamento materializou-se na celebração, pelo então governador, da Chacina do Cabula com metáfora futebolística. “É como um artilheiro em frente ao gol”, afirmou Rui Costa à época.

Na esfera operacional, há três anos, as gestões sabotam a instalação das câmeras nos uniformes policiais. Num evidente estímulo à impunidade, o governo petista instituiu uma normativa que determinava a apuração das mortes decorrentes de intervenção da PM à própria corporação, o que ensejou a posterior declaração de inconstitucionalidade dessa norma pelo Tribunal de Justiça. Ao reduzir a segurança pública à repressão, investiu na militarização e ocupação territorial de comunidades negras marginalizadas, mediante versão local das UPPs, o que intensificou a violência nessas comunidades emparedadas entre dois vetores de abusos, o das facções e o das ações policiais ilegais e violentas.

Paralelamente à ascensão do bolsonarismo, incorporou a gramática e a retórica do populismo punitivista, reverberada em sucessivos ataques às ONGs, movimentos sociais e defensores dos direitos humanos, ao acusá-los de inimigos da polícia, na desqualificação das audiências de custódia e no ataque às iniciativas institucionais do Judiciário, da Defensoria Pública e do Ministério Público. Por fim, apoiou as propostas legislativas de endurecimento penal, como o “pacote anticrime” de Sergio Moro, numa adesão às teses que simplificam os problemas complexos e multifatoriais que produzem a violência e reduzem a resposta estatal exclusivamente à policização e eliminação física dos suspeitos.

Em 2022, o estado registrou mais de 1,4 mil mortes em ações da polícia, a maior taxa do País. São quatro por dia, uma a cada seis horas

Essa política deixou um rastro de sangue em ações policiais que brutalizaram crianças, mulheres grávidas, idosos e, especialmente, homens jovens negros. As fortes evidências de execuções sumárias, maquiadas como situações de confronto, geraram nova modalidade delituosa: a tomada de reféns por criminosos em fuga, para forçar uma rendição com cobertura jornalística que lhes preserve as vidas.

Esse retrospecto ajuda a entender os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que apontam a Bahia no topo do ranking da letalidade policial. Em 2022, foram 1.464 pessoas mortas em intervenções policiais, média de 122 mortos por mês, 28 por semana, quatro por dia, um a cada seis horas. Esse resultado funesto leva a assinatura das gestões petistas e desenha a apocalíptica convergência entre todos os atores institucionais e partidários em torno do genocídio negro e da normalização da racistocracia como forma perversa da democracia brasileira, que sequestra o País e seu futuro para usufruto exclusivo da branquitude.

Para interromper esse circuito de morte é preciso imediata mobilização que inscreva os temas da segurança pública e do racismo na agenda de defesa da Constituição e da democracia. Há três desafios básicos. Primeiro, a imediata adoção das câmeras corporais nos uniformes policiais e a instalação de ouvidorias externas para recepcionar e encaminhar as denúncias de ilegalidades policiais. Segundo, a admissão do fracasso do modelo que intensifica a violência e a criação de gabinetes emergenciais de crise que partam dos estudos e diagnósticos produzidos pelas instituições de pesquisa e incluam representações dos movimentos de familiares de vítimas, entidades de defesa dos direitos humanos, representações das universidades e dos órgãos estatais para formular nova política de segurança pública adequada à ordem constitucional e ao Estado Democrático de Direito. Terceiro, a criação de Comissões da Verdade e Reparação, destinadas a investigar e esclarecer os crimes praticados pelo Estado contra cidadãos vulneráveis, restabelecer a memória aviltada das vítimas e familiares, reparar materialmente e simbolicamente os efeitos da criminalidade estatal, identificar a cadeia de comando que normaliza as ações criminosas estatais, responsabilizar os gestores dessas necropolíticas e possibilitar a emergência de novas bases ético-políticas para interromper o genocídio negro no Brasil.

Lamentavelmente, o governo petista baiano escolheu assumir o comando da locomotiva do genocídio negro e insiste na confirmação do paradoxo salientado por Gil. Durante o novembro negro, realizou shows e propaganda antirracista abundante, ao mesmo tempo que fez entrega pública de viaturas como espetáculo no Farol da Barra. Como nos versos cantados por Daniela Mercury, seguiremos ostentando o “primeiro carnaval e o primeiro pelourinho, também”. •

Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023.

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