Economia

O governo Bolsonaro transformou o Ipea em mera assessoria econômico-eleitoral

Neste sentido, nem nos causa mais estranheza alguma a nota publicada e assinada por Erik Figueiredo na condição de atual presidente do Ipea

Paulo Guedes e Jair Bolsonaro. Foto: EVARISTO SA/AFP
Apoie Siga-nos no

Não é de hoje que servidores públicos do Ipea vêm alertando, por meio de sua associação de funcionários e sindicato nacional, para a transformação do antes importante e estratégico instituto de pesquisa econômica aplicada do governo federal em mera assessoria econômico-eleitoral do governo Bolsonaro/Guedes.

Neste sentido, nem nos causa mais estranheza alguma a nota publicada e assinada por Erik Figueiredo na condição de atual presidente do Ipea. Ela soa como mais uma tentativa desesperada do atual governo e sua equipe econômica em, por um lado, criar mais um factoide em meio ao turbilhão de notícias falsas que se prestam ao diversionismo como método de governo, ao mesmo tempo que, por outro lado, busca salvar o projeto de reeleição.

Essa hipótese, em nada descabida, representaria, simultaneamente, o aparelhamento definitivo desse órgão de Estado pelo governo Bolsonaro/Guedes e o seu completo desvirtuamento institucional.

Com relação a esse mais recente e funesto episódio, chama atenção ao menos dois conjuntos de problemas. Em primeiro lugar, a referida nota atenta frontalmente contra a própria legislação eleitoral, pois tal propaganda institucional vai de encontro à orientação legal sobre permissivos e impedimentos inerentes à publicidade, na medida em que visa, claramente, favorecer a visão – diga-se de passagem, surreal – do atual governo sobre tão complexo e delicado tema, provocando uma injustificada desigualdade entre os candidatos.

Em comparação, lembre-se, por exemplo, que o nome do ex-presidente Lula vem sendo coberto em repartições públicas, museus e monumentos que guardam o seu nome, a exemplo do ocorrido no Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro, sobre cuja placa comemorativa foi colocada uma tarja preta sobre o nome do Presidente da República que o inaugurou. Algo totalmente ilegal, desproporcional e sem explicação ou justificação plausível.

Mas mais importante que isso, em segundo lugar, há que se atentar para o próprio teor (em termos de métodos e méritos) do artigo assinado por Erik Figueiredo como presidente do Ipea.

No estudo “Expansão do Programa Auxílio Brasil: Uma Reflexão Preliminar”, ele afirma que o crescimento da desnutrição e insegurança alimentar no Brasil não têm impactado os indicadores de saúde ligados à fome: entre 2018 e 2021, o número de internações relacionadas à desnutrição proteico-calórica de graus leve, moderado e grave, ao atraso do desenvolvimento devido à desnutrição e ao marasmo nutricional, apresentou queda!

Ora, sobre a evolução da pobreza, é importante afirmar que dados oficiais para o ano de 2022 não estão ainda disponíveis. O cálculo da pobreza depende de sabermos todas as rendas recebidas pelas famílias brasileiras, inclusive as transferências, e isso é divulgado anualmente pelo IBGE, no Caderno de Todas as Rendas da PNAD Contínua. Ademais, a PNAD Contínua ainda será reponderada após o Censo de 2022, podendo sofrer alterações mais ou menos significativas em todas as suas variáveis. 

A nota do presidente do Ipea louva a expansão do Auxílio Brasil, mas ignora todos os problemas de desenho desta política, que perdeu focalização em relação ao antigo Bolsa Família e isso pode levar ao paradoxal aumento da fome, mesmo com aumento de valor do benefício. As filas nos centros de referência em Assistência Social, a desorganização do Cadastro Único, e a permanência da Inflação de alimentos são sintomas desse desenho inadequado de política pública. 

Figueiredo também reproduz uma relação bastante espúria entre Auxílio Brasil e mercado de trabalho. Não se pode simplesmente fazer uma regra de três entre o saldo de empregos formais criados pelo CAGED e a expansão do Auxílio Brasil. Isso fere os princípios da Contabilidade Social, em que a renda circula por multiplicadores keynesianos, isto é, dependente de investimentos prévios que favoreçam a demanda por empregos no mercado de trabalho.

Por fim, a nota usa a maior parte de seu espaço para tentar refutar os estudos sobre insegurança alimentar recentemente realizados no Brasil. Aqui há um imenso desconhecimento em relação ao assunto. Afinal, os efeitos da fome sobre indicadores de saúde são, em sua maior parte, de médio prazo. Além disso, no contexto da pandemia, o acesso aos serviços foi afetado pelo aumento da demanda relacionada à covid e pela insegurança populacional do contágio. Houve redução de atendimentos, com queda das internações não relacionadas à covid informadas no Sistema de Informações Hospitalares (SIH) do SUS (-25% das internações em procedimentos clínicos somente em 2020). 

Os especialistas da área de saúde sempre têm muito cuidado em deixar claras as limitações dos indicadores, bem como em realizar afirmações taxativas com dados de períodos recentes, ainda mais num período de pandemia. Os sistemas de vigilância, os processos de consolidação e qualificação dos dados também apresentaram reflexos negativos desse contexto pandêmico. O Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN) e o SIH não ficaram imunes.

Assim, se a subnotificação e sub-registro são uma preocupação constante para análises de registros administrativos da saúde, os dados que incluem o período de 2020 e 2021 demandam ainda maior cautela com relação à cobertura e análise de qualidade da informação. Não basta selecionar indicadores com base na literatura internacional. É necessário conhecer bem os sistemas de informação nacionais, a área de saúde e segurança alimentar em si, e ter noção do contexto. Além disso, é importante saber quais são os mecanismos e em qual período uma situação irá se refletir sobre os indicadores. A nota reflete pouco conhecimento acerca dessas áreas, dos seus sistemas de informação, dos indicadores e da qualidade dos dados. 

Cabe destacar, também, que estudos recentes sobre insegurança alimentar traçaram um novo perfil da “fome” contemporânea em sociedades industrializadas, associada à má nutrição pelo aumento do consumo de ultraprocessados, em geral mais baratos que os produtos mais saudáveis. Esse consumo é uma das causas do aumento simultâneo de obesidade e fome, que também deveria ser fonte de preocupação e objeto de políticas públicas. 

Pelas razões apontadas acima, a Afipea-Sindical se coloca em total alerta e prontidão para o debate público indispensável ao esclarecimento absoluto de tal tema, bem como na linha de frente do combate a esse caso extremo de possível assédio institucional no setor público federal.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo