Opinião

O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães foi um homem corajoso e coerente até o final

Que Deus o recompense pelos milhões de pessoas que salvou e alimentou, por meio da cooperação humanitária brasileira, inclusive em Gaza e na Cisjordânia

O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
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Escrever, como tudo na vida, é um ato de liberdade, o qual, porém, não está livre das injunções, das boas e das más.

A morte de um amigo ultrapassa qualquer outra possibilidade de tratamento de outro tema.

Igualmente, impõe que coisas pessoais sejam reveladas: a racionalidade dá passagem à emoção, ao carinho e ao afeto.

Ontem, ocorreu o passamento do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ex-secretário geral do Itamaraty, entre outros cargos importantes que ocupou.

Fui assessor dele por aproximadamente 7 anos, durante os primeiros mandatos do presidente Lula.

Como acontece com todo grande homem, a personalidade do embaixador extrapou o tempo e o espaço.

Nós nos conhecemos em Porto Alegre, em um dos primeiros Fóruns Sociais Mundiais (FSM).

Eu trabalhava no governo do estado do Rio Grande do Sul (pois não havia política externa no desgoverno de Fernado Henrique Cardoso), na gestão do governador Olívio Dutra, e fazia interpretação voluntária para o FSM, nas férias.

Admirava o embaixador por sua postura coerente, honesta e independente com relação à Área de Livre Comércio (ALCA), que os Estados Unidos da América tentavam impingir à região, para colonizá-la ainda mais.

Entre um FSM e outro, o embaixador foi convidado a falar na Federação do Comércio do Rio Grande do Sul.

Também estava na mesa o encarregado de negócios dos EUA, que deu interpretação grosseira às palavras do embaixador Samuel.

Eu me levantei e disse que ele não tinha o direito de distorcer as palavras do embaixador, como fizera.

A sala gelou, pois a dita Federação é de extrema-direita e jamais poderiam imaginar que alguém jogaria luz sobre as inverdades proferidas pelo enviado do patrão, os EUA, colocando-as no lugar correto.

No mesmo dia, recebi ligação do Palácio Piratini, dizendo que eu errara.

O tempo é senhor da razão e mostrou que tanto o embaixador quanto eu estávamos certos.

Posteriormente, o então vice-governador Miguel Rossetto iniciou ciclo de discussões sobre a a ALCA e os efeitos nefastos que teria para a agricultura do RS.

Então, propus que o embaixador fosse convidado.

A fala dele foi demolidora. Mostrou com riqueza de detalhes como o acordo seria desastroso para o RS e o Brasil.

Naquele dia, à tarde, deu palestra, aberta ao público, na Fundação de Economia e Estatística do RS, que Dilma Rousseff presidira.

A imprensa cobriu o evento e as palavras dele foram ainda mais fortes.

Ao final, eu, emocionado, disse a ele que estava orgulhoso novamente de ser diplomata, pois nunca imaginara que ouviria de um colega palavras tão corajosas (de fato, nunca mais ouvi).

Ele, então, me respondeu: “Mas você notou que eu disse falar a título pessoal”.

Pensei com meus botões: isso não existe, pois conheço bem a péssima “grande” imprensa gaúcha, totalmente subordinada à oligarquia local, nacional e internacional.

Dito e feito: ao retornar a Brasília ele foi mais uma vez sancionado pelo chanceler Celso Lafer, o suposto intelectual que tem três livros, todos perfeitamente ininteligíveis.

Mais uma vez, o tempo seria senhor da verdade.

Lula venceria e o embaixador seria o segundo homem do Itamaraty, o primeiro em carregar o piano, como o próprio Celso Amorim diria no discurso em que lhe deu posse.

Foram anos de intenso trabalho, vitórias que se somavam, o Brasil surgia como um farol, em meio ao mar de mentiras e guerras de George Bush, Tony Blair e outros facínoras, que a história se encarregou de levar, justamente, ao lixo.

Em 2006, quando Israel invadiu o Líbano, pela enésima vez, foi ele quem liderou o esforço de resgate dos milhares de brasileiros no sul do Líbano. Uma operação homérica: fretamento de aviões, reserva de todo um hotel na Turquia, contatos como governo israelense para não bombardear comboios os comboios brasileiros etc.

Então, ele se deu conta de que precisávamos de uma rubrica orçamentária para a assistência humanitária.

A minha colega e brilhante diplomata Mari Carmen Rial Gerpe sugeriu que ficássemos com a rubrica, pois ainda não havia unidade no Itamaraty que cuidasse do tema.

Fui despachar com ele e a resposta me surpreendeu: “Mas é lógico, com quem mais ficaria?”.

Voltei muito contente, mas também ciente da responsabilidade e do perigo que implicava alguém com as minhas posições políticas assumir a ordenação de despesas. O golpe de 2016 confirmaria que o meu pressentimento era fundado.

Dessa forma, o Brasil passou a contar – pela primeira vez em sua história – com cooperação humanitária internacional.

No arco de três anos, estaríamos entre os dez maiores parceiros internacionais, recusando ser classificados como “doadores”, pois entendíamos que essa terminologia unilateral, enganosa e humilhante era dos países do Norte, não cabendo ao Sul, principalmente à pátria de Paulo Freire, aquele que desvelou que ninguém só ensina, ninguém só aprende, todos ensinamos e aprendemos uns com os outros.

Após o golpe de 2016, nos encontramos duas vezes, uma delas em palestra dele na UNISINOS e outra, na Escola de Formação Florestan Fernandes, do Movimento Sem-Terra.

Desta última feita ele me disse, a propósito de eu ter expedido circulares que, de certa forma, denunciavam o golpe de Estado que viria: “Você fez bem; teve a oportunidade e fez.”

Esse era o embaixador Samuel, um homem corajoso e coerente até o final.

Que Deus o recompense pelos milhões de pessoas que salvou e alimentou, por meio da cooperação humanitária brasileira, inclusive em Gaza e na Cisjordânia, onde provemos à Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos no Oriente Médio (UNRWA) – que alimenta 5 milhões de pessoas em Gaza, na Cisjordânia, no Líbano, na Síria e na Jordânia – arroz brasileiro, por três anos.

Precisamente, é essa Agência que está sendo atacada por Israel, sob o argumento de que dos seus 13.000 funcionários, 12 teriam participado do 7 de outubro, sem apresentar, porém, prova alguma da acusação.

Por esse ato de clara contrapropaganda, para tirar do noticiário a decisão da Corte Internacional de Justiça em uma acusação de genocídio apresentada contra Israel, onze países suspenderam suas contribuições àquela Agência, sendo importante listar alguns desses, que passam a ser cúmplices do genocídio palestino, perpetrado pela extrema-direita israelense: EUA, Itália, França, Inglaterra, Canadá, Austrália, Finlândia e mais outros 4, que se creem justos e democráticos, mas condenam – sem julgamento justo em que os acusados tenham direito à defesa – toda uma população inocente que depende da UNRWA para sobreviver.

Também nesse caso, o tempo será senhor da razão e o sangue dos inocentes mortos por essa manipulação grotesca não deixará de manchar suas bandeiras.

A nossa, em grande parte graças ao embaixador Samuel, jamais será vermelha.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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