

Opinião
O conspiracionismo é a porta de entrada para o extremismo – é preciso cortar o mal pela raiz
Não adianta portanto apenas “seguir o dinheiro”, é preciso cortar sua fonte – como fizeram, acertadamente, Moraes e o YouTube


Apesar do silêncio de Jair Bolsonaro – ou talvez por causa dele – as movimentações golpistas de seus seguidores persistem. Recentemente, entidades institucionais participaram destes processos de desestabilização da democracia, vide as notas oficiais emitidas pelo Ministério da Defesa e pelo Exército, a convocação de audiência pública no Senado para tratar da “transparência” no processo eleitoral, e o recente requerimento do Partido Liberal (PL) para a anulação de votos.
Isso preocupa, pois é sinal de que as narrativas conspiratórias estão ultrapassando as multidões extremistas nas redes e das ruas e alcançando o ambiente institucional.
Narrativas conspiracionistas sempre existiram. Elas tendem, contudo, a se proliferar em contextos de exceção. Hoje, a internet inverte o normal e a exceção, abrindo espaço para que diferentes segmentos conspiratórios se conectem e se retroalimentem – assim, gradualmente, passando das franjas para o centro do sistema sociopolítico.
Sem controle, esse processo pode, sim, levar à morte lenta da democracia, corroendo gradualmente a confiança da sociedade nas instituições.
Na semana passada, duas movimentações buscaram barrar essa movimentação. Primeiro, a rejeição e multa aplicada pelo ministro Alexandre de Moraes ao PL. Depois, a desmonetização dos canais da Jovem Pan pelo YouTube.
Esta última decisão ataca um dos pilares centrais do avanço do conspiracionismo na sociedade brasileira: as camadas intermediárias que ligam os públicos convencionais na superfície da internet aos públicos extremistas e conspiratórios reunidos em camadas mais opacas, como os aplicativos de mensagens e os sites de mídia “alternativa” da extrema-direita.
Na literatura sobre radicalização política, existe uma formulação conhecida como o dilema do terrorista. Organizações extremistas buscam sempre um equilíbrio entre dois parâmetros opostos: segurança operacional e alcance. Se se expõem demais, correm o risco de sofrer sanções e controles. Mas, se permanecem escondidas demais, não conseguem atrair novos membros.
A plataformização da internet de certo modo resolve esse paradoxo: os canais que capturam a atenção dos potenciais extremistas não precisam ser os mesmos que os radicalizam. Basta que eles estejam ligados por avenidas algorítmicas que façam o usuário desavisado entrar em um dos muitos rabbit holes da internet: as “tocas de coelho” que levam cada vez mais fundo até as realidades paralelas produzidas online.
Mídias como a Jovem Pan e o Brasil Paralelo – que Eduardo Moreira acertadamente chamou, em conversa recente, de canais de recrutamento – têm operado como portas de entrada para o extremismo conspiracionista.
Esses canais não precisam ter um discurso abertamente extremista. Sua função é de plantar a semente da dúvida no usuário comum, nos intermediários que formam o centro do sistema político-eleitoral.
Eles o fazem por meio de um discurso ambíguo e que soa neutro para o senso comum: que mal poderia haver em levantar questões? Por que não podemos ouvir também o outro lado? Não estamos dizendo que houve fraude, mas também não estamos dizendo que não houve.
O que o usuário comum não vê é que este é um discurso que opera sempre em dois níveis: um da interação local (onde ele está), e um meta-comunicativo, onde prevalecem as táticas de abordagem indireta. Este último é invisível para o usuário comum – e é justamente ele que implode as próprias condições do diálogo democrático.
Quando esses canais insistem em trazer o “outro lado” de qualquer evento que ocorra nos públicos convencionais, eles estão, em termos cibernéticos, reduzindo a relação sinal-ruído. Isso se dá em três etapas:
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- Primeiro, aumentam a ambiguidade do ambiente informacional, de modo que várias “versões” do mesmo fato passem a parecer verossímeis.
- Ao mesmo, quebram a regularidadedos padrões do público convencional pela contestação ininterrupta de seus fatos, que impede que eles se estabilizam.
- Por fim, introduzem novos sinais no ruído, porém de modo invertido: quem está dando o golpe é o TSE, são as instituições.
É essa última inversão que autoriza ações de violência no mundo off-line, na medida em que seguidores radicalizados acreditam estar diante de uma ameaça ao que consideram a base da sua própria existência: a liberdade, a vontade do “povo”, Deus, família, o livre mercado, etc.
Como Thomas Kuhn e tantos outros vêm mostrando, todo e qualquer sistema de produção de fatos, mesmo o da ciência mais avançada, nunca é perfeito: sempre “sobra” algo. A crise se instala quando aquilo que é residual e marginal ganha força suficiente para desestabilizar o centro. Em condições normais, é esperado que esse processo de reacomodação ocorra espontaneamente na trajetória da ciência e de outras instituições. Porém, é totalmente diferente quando ele é motivado por má fé, avançado de forma camuflada e impulsionada por atores privados movidos por seus próprios interesses políticos e econômicos.
As plataformas não apenas reduziram a um mínimo o custo dessas operações de desestabilização (qualquer um que tenha um celular pode, hoje, contestar qualquer coisa com base em qualquer argumento ou empreender no seu próprio nicho conspiracionista). Mas não apenas isso: seu modelo de negócios, baseado na venda da atenção e dados dos usuários para anunciantes e outros clientes, recompensa, inclusive financeiramente, esse tipo de ação.
Não adianta portanto apenas “seguir o dinheiro”, é preciso cortar sua fonte – como fizeram, acertadamente, Moraes e o YouTube.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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