Letícia Cesarino

Antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina. Autora de 'O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital'

Opinião

O Capitólio brasileiro já passou?

À medida que o dia da posse se aproximar, a temperatura conspiratória e extremista voltará a subir – independente da incitação direta, ou não, por parte do atual presidente

O Capitólio brasileiro já passou?
O Capitólio brasileiro já passou?
Créditos: CAIO GUATELLI / AFP
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Os protestos de rua desencadeados pelo resultado eleitoral foram gestados ao longo de todo o governo de Jair Bolsonaro. As narrativas conspiratórias de fraude, já presentes em 2018, começaram a se intensificar muito antes do período eleitoral, dando o tom das manifestações pró-governo em 2021. Seu conteúdo foi variando em ondas sucessivas: do voto impresso à contestação dos institutos de pesquisa, de auditorias paralelas a denúncias de complôs dentro do Tribunal Superior Eleitoral.

O que se mantinha constante era o cultivo da certeza de que haveria algum tipo de manipulação do resultado eleitoral, e que uma vitória de Lula jamais poderia ser resultado espontâneo da livre expressão da vontade popular.

Como também era esperado, o que ocorreu na realidade foi justamente o inverso do que diziam essas narrativas. A tentativa de estelionato eleitoral se deu por parte do atual governo, por meio de múltiplas abordagens indiretas: manipulação da economia e das políticas públicas, esforços mais ou menos diretos de compra e supressão de votos, coerção de trabalhadores e fiéis por parte de patrões, pastores, aliados locais do Centrão.

Esse “acuse-os daquilo que você faz” é um expediente comum da extrema-direita, e tem a função de justificar e legitimar ações extra-legais. Se eles se veem numa guerra existencial onde o inimigo teria conspirado para dominar as próprias instituições, vale absolutamente tudo para impedi-lo de chegar ao poder. 

Foi essa voz conspiratória que preencheu o vácuo do silêncio de Jair Bolsonaro nos dois dias que se seguiram ao resultado eleitoral. Naquele momento, parte das multidões online se converteu em multidões nas ruas, praças e rodovias.

A partir daí, tudo seguiu um roteiro próximo ao que levou à invasão do Capitólio estadunidense em janeiro de 2021. Os auto-intitulados patriotas vão às ruas e redes aguardar e pressionar pelo desenlace final, conhecido entre os trumpistas por “Storm”, ou tempestade. Nessa espécie de versão laica do Apocalipse bíblico, as Forças Armadas finalmente interviriam para revelar a todos os planos dos inimigos e puni-los, reinstaurando a ordem e abrindo uma nova era de “awakening”, ou despertar, no país. 

Na tempestade brasileira, a orientação que circulava há algum tempo era para não mencionar diretamente o presidente, pois a lei prescreveria que só o “povo” tem a prerrogativa de convocar as FFAA. De acordo com a leitura imaginária que a extrema direita faz da Constituição de 1988, em especial do Artigo 142, uma intervenção militar assim realizada teria respaldo constitucional. Assim, quando o presidente se pronuncia dizendo que fará tudo dentro das quatro linhas, é esse “apito de cachorro” que seus seguidores ouvem. O que eles são incapazes de perceber, contudo, é que os comandos para não mencionar o presidente nas manifestações são, muito provavelmente, parte de uma ação camuflada visando evitar que Bolsonaro seja futuramente responsabilizado pelos seus crimes à ordem democrática.

Por quanto tempo essa situação irá persistir? Podemos prever que, como em outros tipos de formação sectária, o grupo permanecerá inviolável a qualquer evidência contrária vinda do exterior. Por isso, o não-cumprimento da profecia não a desacredita: vários modos de lidar com a dissonância cognitiva vão sendo ativados.

O pronunciamento de Bolsonaro na noite de quarta-feira, por exemplo, levou, num primeiro momento, a uma certa confusão nos públicos da extrema direita. Alguns seguiram bloqueando rodovias, tentando decodificar o que Jair Bolsonaro realmente quis dizer, e até mesmo duvidando se a pessoa na live era de fato ele. Essas interpretações apontam para uma autonomia relativa dos segmentos mais extremistas e conspiratórios com relação à figura do presidente, como também foi o caso do QAnon nos EUA. Diferente de lideranças populistas, “Q” não tinha um corpo físico – na prática, ele era o próprio corpo digital de seguidores, organizados de modo algorítmico.

Ao que tudo indica, a maior parte dos seguidores de Bolsonaro depreendeu do seu último pronunciamento que a narrativa-mestra da fraude/intervenção continua válida, mas que deveriam se concentrar numa “resistência civil” pacífica em frente aos quartéis. Essas manifestações vêm se auto-organizando e auto-financiando via mídias sociais e pix, mas também com apoio de setores do agronegócio. Nos últimos dias, vêm se avolumando chamadas para uma greve geral de patrões e empreendedores “contra o comunismo”.

Finalmente, talvez o modo mais comum de lidar com a dissonância cognitiva seja adiar o momento do desenlace final. Assim, no dia seguinte ao resultado eleitoral foi comunicado que o relatório da suposta auditoria das FFAA seria publicizado às 19hs; depois, passou para as 20hs; então, para a meia-noite. Depois disso, começaram a circular mensagens com outras datas, como 8 de novembro, e prazos, como 21 dias. Passado o suposto prazo constitucional de 72 horas para que os militares intervissem, outras ondas narrativas foram tomando conta do ecossistema, como o relatório argentino alegando erros na apuração eleitoral. 

Nos últimos dias, a atmosfera de guerra permanente típica desses públicos tem sido, ainda, alimentada pela preocupação com ataques massivos de infiltrados em aplicativos de mensagens, e, nas redes sociais, com a suposta censura de conteúdos e perfis que insistem, como fez Trump em 2021, na “grande mentira” tupiniquim.

É possível, portanto, que a “tempestade” brasileira ainda não tenha passado. Após quatro anos submetidos a um regime de terror e medo dentro de aplicativos e mídias sociais, os seguidores do presidente que hoje ocupam ruas pelo país sequer concebem a possibilidade de voltar a ter Lula como presidente. À medida que o dia da posse se aproximar, a temperatura conspiratória e extremista voltará a subir – independente da incitação direta, ou não, por parte do atual presidente. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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