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Nuclear: esclarecimentos necessários

Retomar a construção da usina nuclear de Angra 3 com o mesmo projeto de Angra 2 é um crime anunciado

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Dia 19 de março, o presidente da Eletronuclear, Leonam dos Santos Guimarães, contestou um artigo meu publicado na Folha de S.Paulo em 5 de março. No dia 21, o presidente da Associação Brasileira de Energia Nuclear (ABEN), Claudio Almeida, respondeu a outro artigo meu publicado na CartaCapital em 11 de março.

As dúvidas que levantei seguramente incomodaram. E de fato são muito preocupantes: retomar a construção da usina nuclear de Angra 3 com o mesmo projeto de Angra 2 é um crime anunciado. Ele é da década de 70 e não leva em conta as recomendações de segurança da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Para que a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) licenciasse Angra 3 com esse projeto, precisou engavetar pareceres contrários de seus próprios engenheiros e desrespeitar as determinações do MPF quando investigou a razão das divergências. Os Tribunais do Japão vem condenando os responsáveis pelo acidente de Fukushima por desconsiderarem alertas técnicos, chamando isso de negligência, enquanto a CPI do Parlamento japonês após o desastre disse que houve o que chamou de “conluio” entre empresas e governo.

Como muita coisa no Brasil também tem cheiro de corrupção, em Angra 3 isto ficou demonstrado com a condenação do então presidente da Eletronuclear e mais recentemente com a prisão do ex-presidente Temer. E matéria exibida no dia 24 de março no “Fantástico” da TV Globo apresentou essa usina como um espaço destinado mais do que tudo a essas práticas.

Como a Folha de S.Paulo só pôde abrir 500 caracteres no Painel do Leitor para a resposta ao presidente da Eletronuclear, os interessados poderão lê-la aqui. Mas a CartaCapital nos fez a gentileza de oferecer espaço para uma tréplica ao artigo do Presidente da ABEN. É o que se segue.

Na verdade, os presidentes da Eletronuclear e da ABEN se ativeram em seus artigos à defesa da opção nuclear e de Angra 3, sem trazer provas concretas sobre uma eventual atualização do seu projeto. Enquanto um documento oficial da Eletrobras-Eletronuclear sobre os critérios de segurança para Angra 1, 2 e 3, publicado em 10 de maio de 2011 (após, portanto, o licenciamento de Angra 3), dá em detalhe as dimensões e características dos Prédios de Contenção de Angra 2 e diz simplesmente, sobre Angra 3, que tem “estruturas semelhantes às de Angra 2”.

Mas o segundo desses artigos surpreende de forma especial pelo nível de desinformação que revela. O preocupante é que seu autor declarado é o presidente de uma dessas entidades poderosas que, associadas umas às outras, podem estar ditando as políticas nucleares pelo mundo afora.

O senhor Claudio Almeida cita a usina de Grafenrheinfeld, na Alemanha, como referência para a usina de Angra 3 (como já o era para Angra 2). Cita também, não sei porque, a usina de Philipsburg, no mesmo país, que continuaria em operação. Quanto a esta, o primeiro de seus dois blocos já foi desativado e está sendo desmontado, e o segundo o será até o final deste ano. Quanto a Grafenrheinfeld, primeira usina desativada quando o governo da Alemanha decidiu abandonar a energia nuclear, é acabrunhante o testemunho de um engenheiro de segurança nuclear alemão Dieter Majer, funcionário aposentado do seu governo. Em vídeo enviado ao Seminário Internacional realizado no Senado Federal em outubro de 2015, ele afirmou que atualmente nunca se construiria na Alemanha uma usina com o projeto da usina de Grafenrheinfeld.

O presidente da ABEN me atribui a intenção malévola de criar “pânico e escândalo” junto à população quanto aos riscos da energia nuclear. Mas acredito que o que de fato acontece é que ele tem medo do medo. A indústria nuclear, no mundo todo, procura minimizar e até esconder tudo que ocorre de assustador nessa atividade. Na França – país mais nuclearizado da Europa – mesmo no caso de um simples acidente, por exemplo com um caminhão com carga radioativa, imensos recursos civis e militares são mobilizados para que em poucas horas não reste nenhum sinal… O medo é de que a elevação do nível de consciência dos riscos das usinas nucleares leve à proscrição desse bom negócio da face da Terra.

 

Dentro dessa preocupação a Agencia Internacional de Energia Atômica fez um acordo formal com a Organização Mundial da Saúde (OMS), órgão da ONU, para que esta não publique nada que não seja revisado pela AIEA – esse estranho organismo criado para promover o nuclear e depois encarregado de nos proteger da atividade que promove… É isto que provavelmente leva o senhor Almeida a fazer, referindo-se a Fukushima, a incrível afirmação de que “as consequências radiológicas do evento foram praticamente nulas”. Mas é por isso também que membros de uma organização pela independência da OMS (Independentwho), se revezaram durante dez anos, de 2007 a 2017, em vigílias de protesto na frente da sua sede em Genebra, e desenvolvem com o mesmo objetivo, em vários países europeus, outros tipos de ação.

O senhor Almeida também minimiza, de forma ainda mais ousada, os efeitos do acidente de Three Mile Island, nos Estados Unidos em 1979. Coincidentemente recebi recentemente vários artigos a respeito, publicados por ocasião do seu 40º aniversário. Aconselharia o senhor Almeida a ler alguns desses textos: https://beyondnuclearinternational.org/2019/03/24/residents-around-tmi-exposed-to-far-more-radiation-than-officials-claimed/ e também https://beyondnuclearinternational.org/2018/03/25/too-little-information-clouds-real-impact-of-tmi/ ou ainda https://www.pennlive.com/news/2019/03/public-will-never-know-truth-behind-three-mile-island-anti-nuclear-energy-advocates-say.html

Mas mais importante talvez fosse que o senhor Almeida procurasse saber por que as pessoas tendem a se assustar com acidentes nucleares. Suponho que já tenha se dado conta de que em outros tipos de acidente pode-se tratar o dano causado ou chorar o luto, e a vida continua, mas em acidentes nucleares há vazamento de radioatividade, que atinge as pessoas de uma forma diferente, que nem todos conhecem mas que é muito mais danosa.

Como ele deve saber, todos estamos sempre recebendo radiações vindas de fontes radioativas e até, em doses mínimas, dos pisos de granito em que muitas vezes caminhamos. Somos muito mais “irradiados” nos raios-x feitos pelos nossos dentistas ou em outros exames radiográficos e tratamentos radioterápicos. Mas, nos dias de hoje e cada vez mais, isso tudo acontece sob muito controle, como com os tripulantes de aviões que recebem radiações cósmicas (assim como os passageiros…) e com os próprios trabalhadores das usinas nucleares, que recebem radiações medidas pelos dosímetros que sempre carregam consigo.

Ora, os acidentes nucleares – especialmente quando há explosões – criam a possibilidade de além de “irradiados”, sermos “contaminados”, se respirarmos ou ingerirmos partículas radioativas que a explosão e os ventos espalharam no ar até que se depositem no chão ou em alimentos, ou se tocarmos em objetos contaminados, como a própria vegetação. E isto sem que o percebamos, porque não vemos nem sentimos essas partículas radioativas. Mas uma vez dentro de nós elas continuam a emitir radiações, sem controle de dosagem, destruindo nossas células. Só depois – às vezes muito depois – conheceremos o caminho destruidor por elas percorrido em nosso corpo, que chega muitas vezes a cânceres e a provocar o nascimento de crianças malformadas.

É por essa razão que se costuma dizer que um acidente nuclear não se restringe ao momento em que aconteceu. Ele começa quando aconteceu. Na matéria do segundo link sobre Three Mile Island indicado acima, um dos entrevistados usa uma imagem significativa: “um acidente nuclear é um funeral que dura 500 anos”…

Seria surpreendente que o presidente da ABEN não soubesse que os três acidentes a que estamos sempre nos referindo foram acidentes “especiais”, raros, que passaram a ser chamados de “severos”, em que o descontrole da temperatura faz com que o reator derreta. E com isso podem ocorrer explosões com grande disseminação de partículas radioativas. Este tipo “novo” de acidente era considerado impossível até que o primeiro acontecesse, exatamente em Three Mile Island, e depois dois outros, com explosões, em Chernobyl e Fukushima – embora hoje se diga que efetivamente o primeiro ocorreu em 1957 na União Soviética, numa fábrica secreta de plutônio para bombas atômicas, do qual o mundo só veio a saber 30 anos depois…

O senhor Almeida diz que desconheço a “enorme” diferença entre esses três acidentes. Esclareço a ele que sei muito bem que, nas tecnicamente chamadas “falhas múltiplas” que os provocaram, houve diferentes combinações de falhas humanas, de equipamentos e de desastres naturais. Mas, em compensação, o senhor Almeida parece desconhecer (ou querer ignorar) as catástrofes sociais e ambientais, com efeitos a longuíssimo prazo, que essas explosões provocam.

As partículas radioativas que disseminam vão muito longe. A nuvem expelida em Chernobyl cobriu toda a Europa. Na França, num esforço de minimização que foi objeto da chacota geral da nação, o responsável pela segurança radiológica afirmou que ela parou na fronteira do país. Nós brasileiros podemos afirmar que pelo menos na Irlanda deve ter entrado porque enfrentamos o problema de ter importado leite irlandês radioativo. O mesmo devem dizer os italianos depois que na região norte de seu país surgiram javalis radioativos, que comeram raízes de arvores em cujas folhas caíram partículas de césio-137 carregadas pela nuvem de Chernobyl. Lembremos que em Goiânia, no Brasil, 19 gramas desse mesmo césio-137, retiradas de um aparelho de radioterapia abandonado, matou nas primeiras semanas quatro pessoas e não se sabe exatamente quantas tiveram membros amputados ou morreram ao longo das semanas, meses e anos posteriores. Sem falar da enorme discriminação sofrida muito tempo pela cidade, seus produtos e seus habitantes por medo de “contaminação”.

O senhor Almeida acharia que os pais de crianças que vivem em áreas próximas a usinas e a acidentes podem continuar a viver tranquilos se informados desses riscos – como todos o acabam sendo? Com o aumento de casos de câncer de tiroide e leucemia em crianças de Chernobyl e Fukushima, a OMS não ousaria desmentir que organismos jovens são mais afetados.

Na verdade foi a elevação do nível de consciência dos riscos do nuclear que, após o choque causado pelo acidente de Fukushima – um dos países de mais alto nível tecnológico do mundo e caracterizado pela disciplina de seus cidadãos – uma maioria de alemães levou seu governo a desativar as usinas nucleares do país. E é por essas e outras razões que está aumentando o número de países europeus (Áustria, Itália, Suíça, Bélgica) e de outros continentes (Vietnã, Jordânia, África do Sul) que se afastam dessa opção para produzir eletricidade.

Mas é preciso dizer ao senhor Almeida que não precisa ter medo do trabalho de informação feito pelos que se deram conta dos riscos do nuclear. Não será esse trabalho que fará a indústria nuclear desaparecer, a não ser que ocorra em qualquer parte do mundo um novo acidente “severo” – que isto nunca aconteça, e temos que fazer tudo que for possível para que não aconteça. O que de uns tempos para cá vem efetivamente ameaçando a sobrevida da indústria nuclear é a análise econômica, pela elevação de custos exigida pela segurança. Nesse sentido indico outra matéria, coincidentemente também referida a Three Mile Island, que relata como essa usina, acidentada mal passados 90 dias do início de seu funcionamento, se tornou um enorme problema para seus proprietários: https://beyondnuclearinternational.org/2019/03/24/too-cheap-to-meter-now-needs-a-bailout/

Essa matéria se refere à tendência de parar de construir usinas nucleares que se observa nos Estados Unidos, onde elas são de propriedade privada, por estarem se tornando antieconômicas. E publicações anuais como o World Nuclear Industry Status Report indicam que se trata de uma tendência mundial. Infelizmente para nós brasileiros, é o desconhecimento dessa tendência que leva nosso governo a pretender construir Angra 3 – obviamente com dinheiro dos russo ou dos chineses, que de quebra tentarão nos enfiar goela abaixo no nordeste mais algumas usinas de sua fabricação.

Quanto à afirmação do senhor Almeida de que os três acidentes de que tratamos foram os únicos ocorridos até hoje em usinas nucleares (quem teria tido a desfaçatez de lhe dar essa informação?), sugiro que seus auxiliares busquem as listas existentes, facilmente disponíveis. Há até livros inteiros sobre isso, como o que indico abaixo somente sobre os principais ocorridos na França: “Les dossiers noirs du nucléaire français”. Um de seus autores, especialistas respeitados pela sua competência, foi quem desmascarou na TV o alto funcionário da segurança nuclear que criou a estória do bloqueio, nas fronteiras, das nuvens radioativas de Chernobyl. Outro físico nuclear francês de mesmo renome escreveu que em muitos dos casos relatados nesse livro o pior não aconteceu por uma pura questão de sorte.

Não quero alongar demais este texto, mas preciso me referir à eventual evacuação de Tóquio após o acidente de Fukushima, que segundo o senhor Almeida “nunca foi necessária”. Todos sabemos disto. Como dizia Naoto Kan, Primeiro Ministro do Japão quando ocorreu o acidente, ter de evacuar 50 milhões de pessoas seria o fim desse país. Mas como a possibilidade de fato existia, as principais medidas que teve que tomar nos primeiros dias, depois das primeiras explosões, foram exatamente para evitar que essa evacuação se tornasse necessária. É o que ele afirma em múltiplas declarações escritas e gravadas e é relembrado num filme recentemente feito naquele país (“Le couvercle du soleil”).

Ainda sobre Fukushima, o senhor Almeida não compreendeu minha referência a suicídios entre os mais velhos da população evacuada. O que me informaram num dos alojamentos provisórios que visitei, três anos depois do acidente, foi de que seu número já era o dobro dos que morreram com o Tsunami na pequena localidade de 21.000 habitantes de que vieram.

Mas o que considero pior no que o senhor Almeida alinhou em seu texto foi a referência ao número de vítimas de Chernobyl, que disseminou 100 vezes mais partículas radioativas que a bomba atômica de Hiroshima. Ninguém teria a coragem de afirmar, como ele o faz ao que parece sem enrubescer, que houve somente 33 mortos! É até um desrespeito aos que se estima terem sido 600.000 “liquidadores”, nome genérico que deram aos civis e militares convocados por Gorbachev para “apagar o incêndio” – como lhe foi apresentado de início o acidente. Quantos sobreviveram? Hoje eles são reverenciados nos seus países pelo seu heroísmo. Recomendaria ao senhor Almeida tomar um pouco de seu tempo vendo no youtube o documentário “A batalha de Chernobyl”, no qual há depoimentos do próprio Gorbachev, entre os muitos que existem sobre essa enorme catástrofe, para se dar conta da dimensão desse desastre.

O que não ouso recomendar ao senhor Almeida e seus auxiliares é que leiam, nos Anais de 2009 da Academia de Ciências de Nova York, volume 1181, as 327 páginas de um rigoroso estudo de cientistas russos, ucranianos e bielorrussos, prefaciadas pelo presidente da Comissão Nacional de Proteção Radiológica da Ucrânia. Considerado necessário frente às controvérsias em torno dos reais efeitos do acidente, o estudo se define como “uma tentativa de determinar e documentar a verdadeira escala das consequências da catástrofe de Chernobyl”.

Seus autores se apoiaram em grande número de seminários e congressos realizados no mundo em 2006 quando do 20º aniversário do acidente e em mais de 30.000 publicações, estudos e teses de doutorado, com o apoio de dezenas de pesquisadores também da Alemanha, Suíça e Estados Unidos. Eles identificaram também exatamente que países e respectivas regiões foram alcançados pela famosa nuvem de Chernobyl (50% da superfície de 13 países europeus e 30% de outros países).

Se quem enfrentar a leitura desse estudo chegar até a página 322 encontrará a seção 15.3, com o título “Número Total de Vítimas”, que começa apresentando os dados divulgados pelo Fórum AIEA/WHO de Chernobyl em 2005, que indica 9.000 mortos e 200.000 doentes a partir da catástrofe, sem especificar quantas dessas mortes ou doenças se relacionariam com a radioatividade. Mas a conclusão do estudo, antes de terminar dizendo que “os números quanto às vítimas de Chernobyl continuarão a crescer por muitas gerações”, é de que é possível afirmar que somente nos primeiros 15 anos depois do acidente o acréscimo no número de mortes por doenças devidas a ele chegou a 237.000 pessoas na Bielorrússia, Ucrânia e Rússia europeia, a 417.000 nos demais países da Europa, da Ásia e da África e a 170.000 na América do Norte, atingindo, portanto, um total de 824.000 em todo o mundo.

Nessa conclusão o estudo também cita Kofi Annan, ex-Secretário Geral das Nações Unidas, que disse em 2016: “Nunca saberemos o exato número de vítimas de Chernobyl”. É certo no entanto que nunca serão somente 33, como quer nos fazer crer o senhor Almeida.

O Presidente da ABEN termina nos convidando, a mim e a CartaCapital, para uma conversa esclarecedora. Fico à disposição. Poderemos então falar também de outras questões, como da difícil destinação a dar ao combustível usado das usinas, extremamente radioativo, ou dos dois enormes e caríssimos “sarcófagos”, como foi chamada a construção feita sobre as ruínas de Chernobyl, o segundo deles 30 anos depois do acidente, para cobrir o primeiro e tentar evitar os vazamentos de radioatividade que começaram a surgir 10 anos antes.

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