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Marcha pela democracia

Fazer o percurso inverso ao das tropas golpistas serve para nos libertar do passado

O general Mourão Filho, açodado, precipitou a quartelada ao levar seus soldados de Juiz de Fora para a Guanabara – Imagem: Arquivo Nacional
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Dia 30 de março de 1964. O general Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, desencadeia em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, a Operação Gaiola, prisão dos virtuais inimigos do golpe que poderiam mobilizar contra ele uma reação popular. Às 9 da manhã, soldados do Exército detêm José Villani Cortes, presidente do Sindicato dos Bancários de Juiz de Fora, considerado o primeiro preso político da ditadura. Às 3 da tarde, dona Marita Pimentel França Teixeira desarrumava as malas de uma viagem no feriado de Páscoa quando teve a sua casa invadida por soldados que levam preso seu marido, Misael Cardoso Teixeira, diretor em Juiz de Fora da Agência dos Correios e Telégrafos. A prisão de ­Misael ocorre dentro de outro módulo do golpe, a Operação Silêncio, que visava controlar a imprensa e os meios de comunicação.

Na noite de 30 de março, no Automóvel Clube, o presidente João Goulart discursava em solenidade de sargentos da Polícia Militar e das Forças Armadas, em defesa das reformas de base. O evento é por muitos tratado como a provocação final, que teria levado à insurgência o oficialato superior, apoiado na indignação das lideranças políticas de oposição ao governo. Equívoco total. À hora em que Goulart discursava estava em andamento o processo que levaria à sua deposição.

Preocupado em perder protagonismo e às vésperas de vestir o pijama, Mourão atropelou a arrancada de um processo construído laboriosamente, com apoio internacional dos Estados Unidos, pela flor do empresariado brasileiro, por altas patentes militares no Ipes e por lideranças políticas civis, destacadamente, os governadores de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, interessados nas eleições presidenciais de 1965 − todos, mais tarde, cassados em suas ambições.

Assim, no dia seguinte, na madrugada de 31 de março para o dia 1° de abril de 1964, as tropas deslocam-se de Juiz de Fora para o Rio, movimento que agora a Marcha pela Democracia buscará inverter simbolicamente. No próximo dia 1º de abril, vão reunir-se na Cinelândia, no Rio, militantes, intelectuais, jornalistas, lideranças políticas e sindicais, familiares de perseguidos pela ditadura. De lá, rumarão até Juiz de Fora. O trajeto inclui Petrópolis, Levy Gasparian e Simão Pereira, num caminho inverso àquele das tropas de Mourão, visitando marcos dessa viagem e desse período histórico.

Qual o sentido dessa reversão espacial e histórica? Fazer o contramovimento não apaga o curso dos eventos, não atenua as perdas, não remove as afrontas, as humilhações, as dores. Não diminui a violência infringida à ordem institucional, à cena política, aos corpos de quem se opôs e resistiu, tantos dos quais mortos na peleja. Por tudo isso, no entanto, a marcha é indispensável: para que todos possam se lembrar.

É característica dos nossos tempos que as decisões sobre o futuro exijam uma disputa do passado. Jorge Luis ­Borges, em uma de suas lindas Conferências de Belgrano, de 1978, nos diz que, assim como temos o futuro em aberto, o passado também é infinito – pela nossa condição de revisá-lo em nossa memória.

No caso do Brasil, sem que nos atrevamos a esse mergulho corajoso nas feridas da forçada diáspora africana, do extermínio dos povos e culturas tradicionais, sem o desbravamento do grande sertão de nossas relações sociais e familiares, será muito difícil sustentar um projeto civilizatório mais fraterno, mais soberano, mais justo. As Comissões da Verdade, instaladas em todos os níveis federativos, inclusive aqui em Juiz de Fora, fizeram no início do século XXI um trabalho inestimável de mineração de cacos de vida, depoimentos, feridas, vídeos, fotos, imprescindíveis para que sigamos escrevendo a biografia do Brasil.

Todo esse trabalho gerou uma copiosa literatura, principalmente dissertações de mestrado. Uma delas, de Bárbara Vital Matos de Oliveira, apresentada à Universidade Federal de Juiz de Fora em 2015, aborda a mutilação imposta pelo golpe à Câmara Municipal da cidade. Os quatro vereadores do PTB tiveram seus mandatos cassados, três deles foram presos já no dia 31 de março, num desdobramento da Operação Gaiola. Antecipava, assim, o município a violência do dia 10 de abril, quando foram suprimidos numa canetada 40 mandatos parlamentares federais. Inaceitável que esses testemunhos investigativos de nosso passado recente sejam postos a dormir na prateleira.

É preciso defender o Brasil das aventuras e violações oportunistas

No caso dos atingidos pelo golpe, trata-se de superar um indesejável obscurecimento. Dada a exuberância da geração de 68, para a qual era − e continua a ser − proibido proibir, dada a consequência histórica das mobilizações de 77 que deságuam na anistia, na Constituinte, na fundação do PT, ocorre um relativo esquecimento daqueles e daquelas que foram, de muitas maneiras, sacrificados em 64.

Juiz de Fora, pelas circunstâncias, foi duramente atingida: homenageio a todas as vítimas juiz-foranas na figura de Clodsmith Riani, trabalhador eletricitário, sindicalista, presidente da CNTI e da CGT, preso e torturado por sua condição de militante social, alçado à condição de doutor honoris causa da UFJF em 2005, e que hoje, centenário, ainda nos inspira pela autenticidade de sua luta e pela dignidade da sua vida.

Nesse dia 1º de abril de 2024, a UFJF outorgará ao presidente João Goulart, in memoriam, a mesma reverência acadêmica, prestando assim o reconhecimento devido a um presidente da República que, mesmo em condições agudamente adversas, liderou importantes mudanças econômicas, culturais, sociais – entre elas, a instituição, em 1962, do 13º salário.

A Marcha pela Democracia é, e deve ser, um trabalho da memória da sociedade, fundamental para nos desencarcerar do passado, para removê-lo como um peso que nos induza ao risco de uma rota circular. De tal modo que esse passado não se repita. E que o 8 de Janeiro de 2023 seja o expurgo de fantasmas que já não nos habitam, exorcizados de vez pela punição devida.

Por isso, havemos de marchar, para que a democracia, imperfeita como seja, venha a ser defendida como valor universal. À prova de aventuras e de violações oportunistas. E, sempre, condição essencial para o avanço dos direitos humanos e da cidadania plena. Marchamos para lembrar. E lembramos para avançar.

(Agradeço a Biel Rocha, secretário especial de Direitos Humanos da prefeitura de Juiz de Fora, o compartilhamento de informações fundamentais para a escrita deste texto.) •


*Prefeita de Juiz de Fora (MG).

Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Marcha pela democracia’

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