Chico Whitaker

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É arquiteto e ativista social, foi vereador em São Paulo pelo PT, secretário executivo da Comissão Brasileira Justiça e Paz, cofundador do Fórum Social Mundial, membro da Coalizão por um Brasil Livre de Usinas Nucleares, Premio Nobel Alternativo de 2006.

Opinião

Nuclear e o véu da propaganda enganosa

‘É grande o poder de empresas como a Eletronuclear e seus braços são longos’, escreve Chico Whitaker

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Em artigo na CartaCapital, em 23 de fevereiro último eu disse que está esquentando em Recife a discussão sobre a construção de seis usinas nucleares à beira do rio São Francisco. E de fato eis que, mal passados 14 dias, a mesma CartaCapital publicou um artigo do sr. Carlos Mariz, um dos participantes, por mim citado, dessa
discussão.

Por respeito aos leitores desta revista, me vejo obrigado a escrever os comentários que se seguem.
O sr. Mariz é vice-presidente da Associação Brasileira de Energia Nuclear. Embora seus estatutos não a definam dessa forma, essa entidade é uma espécie de “capítulo brasileiro” da Associação Mundial de Energia Nuclear, sediada em Londres. É natural portanto que, em seu artigo, o sr. Mariz repita o que diz esse lobby: “No mundo, a energia nuclear continua em expansão”.

Mas isto não é o que é afirmam organizações independentes, como a que elabora anualmente um Relatório do Status da Indústria Nuclear Mundial (WNISR, na sigla em inglês), segundo o qual a indústria nuclear está “em declínio lento, mas contínuo”.

Esse Relatório dá informações importantes sobre a transição sustentada do nuclear para energias alternativas como a eólica e a solar. Por exemplo, a Alemanha — que começou essa transição há menos de dez anos, um pouco depois da catástrofe de Fukushima — já não terá nenhuma usina nuclear em 2022. E mais, ela deverá fechar até
2038 todas as suas usinas que usam carvão, em benefício do eólico e do solar

Na França, país mais nuclearizado do mundo, a eletricidade gerada pelo nuclear nos anos 2000 baixou, em 2019, de 80% a 70%, e deverá baixar para 50% em 2034, com o fechamento de 14 reatores. O Japão, reabriu 9 das 54 usinas que tinha antes de Fukushima e tenta convencer a população – majoritariamente contraria – a reabrir outras. Mas já fechou 8 definitivamente, e está também abrindo cada vez mais espaço para o solar e o eólico.

Por isso o pico das 438 (e não 442) usinas em operação no mundo, alcançado em 2002, já se reduziu a 408 em meados de 2020. E o nuclear tem uma participação em visível baixa na produção de eletricidade no mundo. Ela ainda responde por 10% dessa produção, quando em 1996 ela respondia por 17,5 %. E em 2019, as eólicas, solares e de biomassa geraram, pela primeira vez, mais eletricidade que o nuclear.

Uma das razões dessa mudança é a elevação do custo das usinas nucleares. Mesmo a China, que ainda constrói novas usinas nucleares, é o país que mais investe nas renováveis: 83 dos 300 bilhões investidos em todo o mundo. Na verdade, o nuclear deixou de ser um bom negócio: está em discussão na Exelon – maior proprietária de usinas nucleares nos EUA, onde esse investimento é privado – a decisão de não construir nenhuma nova usina nuclear no país.

Na França, país mais nuclearizado do mundo, a eletricidade gerada pelo nuclear nos anos 2000 baixou, em 2019, de 80% a 70%, e deverá baixar para 50% em 2034

Mas esses números interessam mais aos que tomam decisões sobre a “matriz energética” dos países. Será mais útil ir direto ao ponto crucial para a vida das pessoas: os riscos das usinas nucleares. Até porque o Sr. Mariz parece já ter abandonado, em sua argumentação, o mito de que a energia nuclear é “a forma mais barata” de
produzir eletricidade; mas continua fiel aos mitos de que é “a forma mais segura” e “a mais limpa”.

Falar desses mitos me obriga a dizer que chamar essas usinas de “nucleares” é mais um embuste, como se a eletricidade nelas produzida se originasse diretamente da energia nuclear. Elas são simples termoelétricas, em que se esquenta água para obter vapor que, sob pressão, faz girar as turbinas que, estas sim, produzem eletricidade. Nas outras termoelétricas, o calor é obtido com a combustão de carvão, diesel ou gás. Nas nucleares o calor é obtido quebrando-se átomos radioativos – como nas bombas atômicas. Por isso deveriam ser chamadas “chaleiras atômicas”, ou mais precisamente “chaleiras radioativas”. É, portanto, só para a modesta função de esquentar água e empurrar o vapor para as turbinas que foram inventados ultra complexos, sofisticados e perigosos sistemas e circuitos, inclusive para que os “reatores nucleares” em que se quebram os átomos não esquentem demais e fundam.

O sr. Mariz também se refere ao papel do nuclear para manter a estabilidade do sistema, dada a intermitência da produção eólica e solar de eletricidade; e à vantagem de os reatores não emitirem gases de efeito estufa, contribuindo, portanto, para frear o aquecimento global.

Quanto à intermitência do solar e do eólico, avanços tecnológicos vêm sendo feitos para estocar energia em quantidade maior do que o fazem nossos celulares ou os carros elétricos, ou como as milhões de motos elétricas usadas na China.

Quanto à emissão de CO2, as usinas em si poderiam contribuir decisivamente, por não o emitirem, para que a Terra não se aqueça acima do limite que permite a vida. Esquece-se, no entanto, da emissão de CO2 na mineração do urânio e no seu tratamento e depois enriquecimento com as centrífugas, na produção de pastilhas e seu transporte para as usinas, e a própria construção das usinas (e depois, seu desmantelamento), e de tudo que é necessário construir para “esconder” o combustível usado e para levá-lo para tais depósitos.

Mas o Relatório do Status da Indústria Nuclear Mundial, já citado, é mais decisivo: o aquecimento global exige soluções urgentes e usinas nucleares ficariam prontas tarde demais, porque é demoradíssima sua construção. Ainda mais quando surgem problemas de segurança, como nas usinas de 3ª geração em construção na França e na Finlândia — e de corrupção, como nos quase 40 anos da novela de Angra 3. E há as interrupções por dificuldades financeiras — são muito caras – além de absorverem recursos que seriam mais uteis financiando eólicas e solares.

O despertar para os riscos da energia nuclear decorreu de três acidentes com derretimento do reator, considerado impossível até que ocorresse o primeiro, em 1979, em Three Mile Island nos Estados Unidos. Mas vieram outros: em 1986 na União Soviética e em 2011 no Japão, que provocaram catástrofes sociais, ambientais e econômicas. O da União Soviética – Chernobyl – foi também um dos causadores do debacle econômico e político do país. Mesmo o mundo do nuclear não poderia tratar disso como algo sem maior interesse, como o fazem seus propagandistas.

Os três acidentes acima, chamados “severos”, resultaram de “falhas múltiplas”: combinam-se erros humanos imprevisíveis e falhas de material e equipamento incontroláveis. No caso do acidente no Japão, em Fukushima, houve um erro prévio, de projeto, portanto também humano: a barreira para barrar tsunamis previsíveis tinha altura e consistência insuficientes. A segurança, que passou a exigir muito mais prevenção e pressionou os custos do nuclear, é que está levando ao seu abandono como forma de produzir eletricidade.

E quanto às mortes provocadas pelos acidentes? Em toda obra há acidentes. Mas além disso o acidente nuclear é diferente, especialmente naqueles em que reator derrete. Seus efeitos perduram por muito tempo e em territórios muito vastos.

Não acredito que o sr. Mariz não saiba que não se pode considerar somente os mortos no momento do acidente. Estes até podem ser em número relativamente reduzido, se considerarmos por exemplo só os bombeiros e os mineiros convocados como “liquidadores” do acidente de Chernobyl – sem nem saber os riscos que iriam correr – ou os trabalhadores das usinas que tentaram evitar o pior em Fukushima. Será que o sr. Mariz não sabe realmente,
ou ignora, que a radioatividade pode matar muitos anos depois? Creio que nunca aceitaria os resultados da pesquisa de cientistas bielorrussos e ucranianos, publicada nos Anais de 2009 de Academia de Ciências de Nova York, que estimava em quase um milhão o número de vítimas da nuvem radioativa de Chernobyl que cobriu toda a Europa.

Tratemos um pouco mais do mito do “modo mais limpo” de produzir eletricidade. O problema pior do nuclear é o do seu lixo: toneladas de combustível usado se acumulam pelo mundo afora, contendo em sua composição o plutônio, elemento altamente radioativo.

Em nenhum lugar do mundo se conseguiu encontrar uma solução. Um só país, a Finlândia, está conseguindo construir um deposito definitivo para esse lixo, para escondê-lo em seus 70 km de tuneis subterrâneos por 100.000 anos (a mais velha das pirâmides do Egito tem 4.600 anos), ou seja, para a eternidade, como dizem os finlandeses. E só conseguiram começar essa construção em 2004 – ao descobrirem um lugar em que a população não protestou… – prevendo termina-la em 2023.

Ora, o sr. Mariz nos diz candidamente que, quando exauridos, os elementos combustíveis das usinas, “(que não são considerados rejeitos) ficam armazenados e poderão, como em alguns países, ser reprocessados, utilizando técnicas conhecidas e disponíveis”.

O Brasil não tem capacidade financeira para usar essas “técnicas conhecidas e disponíveis” (só a França e a Inglaterra o fazem) nem muito menos para construir tais depósitos definitivos. A solução encontrada pela Eletronuclear foi a adotada nos Estados Unidos — os depósitos de armazenamento provisório a seco — depois que esse país encontrou muitos problemas em sua tentativa de fazer depósitos definitivos, como os que já teve a Alemanha e tem agora a França.

Mas com isso essa empresa decretou o fim da região de Angra que, em um dia de devaneios, o pior dos Presidentes que jamais tivemos imaginou que poderia se tornar a Cancun brasileira. Mas ao mesmo tempo autorizou a Eletronuclear a implantar tais depósitos (comprados prontos nos Estados Unidos) na praia de Itaorna – pedra podre, na língua dos indígenas locais – em que estão as usinas nucleares.

Eles ficarão perigosamente por lá pelo menos meio milhão de anos, se somarmos todas as “meias vidas” de radioatividade do plutônio. Que só interessa aos nossos militares, em seu sonho de ter a “bomba atômica brasileira”, para a qual ele é o melhor combustível.

Os moradores da região – indígenas, quilombolas, caiçaras e muitos outros – foram levemente consultados em duas mal divulgadas audiências públicas – ignorando-se os turistas que vêm ao seu lindo litoral e os milionários que nela construíram suas paradisíacas mansões.

Mas tecnocratas não perguntam. Eles executam, prometendo contrapartidas que mal cumprem, como já fizeram para implantar dois “monstros adormecidos” em Angra, ou fazendo falsas promessas frente à resistência, como agora em Pernambuco, dos que sabem o que vão sofrer de fato com a desgraceira da grande obra de seis “chaleiras radioativas”.

Mas é grande o poder de empresas como a Eletronuclear e seus braços são longos: montaram uma operação para calar o Ministério Público Federal, que tinha iniciado uma Ação Civil Pública para que a questão fosse melhor avaliada (não é a primeira vez: em 2010 fizeram o mesmo com outro Procurador do MP, que ousou colocar em dúvida a adequação do projeto de Angra 3 às regras de segurança pós Three Miles Island); conseguiram convencer uma Juíza federal de que o esgotamento do espaço disponível nas piscinas, onde é mantido refrigerado o
combustível usado das usinas, levará à sua parada, sem nem considerar alternativas de maior segurança apresentadas na Audiência Pública; e fizeram o Ibama, já desestruturado e domesticado pelo atual desgoverno, a providenciar o licenciamento da obra.

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