Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Novo livro de Patrícia Santana faz do afeto uma ferramenta antirracista

Em busca da valorização da diversidade étnico-racial no Brasil, a escritora brinda crianças e adultos com a obra ‘Um dia feliz’

Foto: Arquivo Pessoal
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Em janeiro de 2023, completaram-se 20 anos da Lei Federal n.º 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da História e da Cultura Africana e Afro-brasileira em instituições de ensino públicas e privadas do país. Fruto das reivindicações do movimento negro, ainda que as desigualdades educacionais em decorrência do racismo sejam latentes, é imperioso notar que a referida lei tem impulsionado uma série de mudanças não só nas escolas, mas em vários setores da sociedade.

O mercado editorial de livros infantis é parte dessa mudança. Se até pouco tempo as histórias contadas para crianças eram povoadas maciçamente por personagens cujos padrões estéticos remetem ao continente europeu, hoje, tanto nas bibliotecas quanto nas livrarias, é evidente a presença de obras cujos escritos emergem da literatura afro-brasileira, que, dentre outras coisas, objetiva elevar a autoestima de meninas e meninos negros, muitas vezes violada pela discriminação racial.

É nesse contexto de transformação, de busca pelo reconhecimento e valorização da diversidade étnico-racial no Brasil, que a escritora e educadora mineira Patrícia Santana brinda crianças e adultos com seu mais novo livro: Um dia feliz, lançado pelo selo Alegriô. As ilustrações – belíssimas e de traços delicados – ficaram a cargo de Carol Fernandes.

Há muito Patrícia Santana tem se dedicado à literatura infantil afro-brasileira. Ela também é autora de Entremeio e babado (Mazza Edições, 2007), Minha mãe é negra, sim! (Mazza Edições, 2011) e Cheirinho de neném (Mazza Edições, 2011). No recém-nascido Um dia feliz, com muita sensibilidade e encantamento, a autora revela o dia a dia da menina Ayana e de sua avó Maria, cuja relação é atravessada essencialmente pelo carinho e cuidado.

Ao longo da história, surgem falas, palavras e gestos muito presentes no cotidiano de crianças negras que habitam as periferias do país. A verdade é que ao longo de todo livro vi a menina Luana e dona Brasilina, minha avó paterna, que ajudou minha mãe a cuidar de mim e dos meus irmãos, tendo inclusive morado em nossa casa durante muitos anos.

Partindo do compromisso com a arte e com a afirmação da pertença racial das crianças negras, a avó de Ayana cuida dela com muito zelo, como se ela fosse um diamante, uma pérola negra: ajeita o vestido, segura sua mão durante o passeio e unta suas pernas com óleo de coco. Nessa parte do livro, dona Brasilina e seu vocabulário se materializaram para mim:

A vovó nunca se esquecia de colocar um pouco de óleo de coco na palma da mão e, esfregando, passava nas pernas dela e de Ayana. A avó dizia que era para as pernas não ficarem “foveiras”. FOVEIRA é uma palavra esquisita e a menina já tinha feito a clássica pergunta: “O que é foveira, vovó?”. A avó respondia com uma grossa gargalhada: “É uma pele seca, um pouco cinza, às vezes rachada de tanta secura.” O óleo que a vovó passava dava um brilho bonito de se ver e sentir” (p. 7).

No universo de Ayana, “a flor mais bonita”, há festas juninas, casamentos e passeios de charrete. Há também a descoberta do mundo das palavras. É pela janela do ônibus que Ayana mostra já ser capaz de juntar e dar sentido às letras: “Vovó, eu consegui ler tudo!” – diz a pequena leitora. Em mais um gesto com o intuito de assegurar e fortalecer a autoestima da neta, a avó responde: “Você é uma menina muito inteligente!”.

Na travessia feita por Ayana e sua avó, “a felicidade flui como água”, como deveria ser a vida de todas as crianças – e em particular de uma criança negra, nos dizeres da escritora afro-americana Toni Morrison, “a mais ameaçada das criaturas”.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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