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Descaso intolerável

Previsto em lei há 20 anos, o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira continua distante do cotidiano escolar

Mentalidade colonial. Nas escolas, os alunos negros continuam sendo alvo de preconceito e discriminação – Imagem: iStockphoto
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Há 20 anos, o Brasil dava um importante passo para tornar a escola mais acolhedora: a Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio, públicos e privados. Passadas duas décadas, pouquíssimas escolas conseguiram, de fato, adaptar seus currículos e ir além de uma ou outra atividade recreativa em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra.

Educadores ponderam que uma lei dessa dimensão precisa de um tempo de maturação até ser assimilada pela sociedade. Mas cabe ao Estado trabalhar de forma perene e ativa, por meio de campanhas, produção de materiais didáticos, formação de professores e apoio às escolas, para a iniciativa vingar. Até o momento, nenhum livro didático se tornou referência sobre o tema, não pela ausência de intelectuais capacitados para explorar o assunto com crianças e adolescentes. O problema é a falta de financiamento para esses projetos e a inércia do Poder Público, mais uma expressão do racismo institucional, avaliam especialistas consultados por CartaCapital.

A carência de livros didáticos sobre História e Cultura Afro-Brasileira contrasta com a profusão de obras de referência produzidos pela academia, em linguagem universitária. O próprio ministro dos Direitos Humanos, Sílvio de Almeida, é autor de um deles, Racismo Estrutural (2019), da coleção Feminismos Plurais, coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro. Na obra, ele faz questão de deslocar o debate do racismo da esfera individual, como a mídia costuma tratar o tema, ao noticiar o fenômeno como uma deformação moral de indivíduos ou pequenos grupos de pessoas, para mostrar como o preconceito racial está entranhado nas instituições e permeiam todas as nossas relações sociais desde a época do Brasil Colônia. “No caso do racismo institucional, o domínio ocorre com o estabelecimento de parâmetros discriminatórios baseados na raça, que servem para manter a hegemonia do grupo racial no poder”, escreve Almeida, que atuava como advogado e professor universitário antes de ingressar no governo. “Isso faz com que a cultura, os padrões estéticos e as práticas de poder de um determinado grupo tornem-se o horizonte civilizatório do conjunto da sociedade.”

Autora da iniciativa, a ex-ministra Matilde Ribeiro lamenta a morosidade e o desinteresse dos gestores públicos

Para a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, é urgente promover uma educação antirracista no Brasil e, para isso, é indispensável investir na produção de materiais didáticos a partir de um pensamento decolonial. Segundo ela, os livros para o ano de 2023 já foram distribuídos nas escolas, e não tem como voltar atrás. Mas o plano é atualizá-los ainda este ano, com a inclusão de conteúdos sobre a História e Cultura Afro-Brasileira. Este foi, por sinal, o primeiro pedido da ministra à secretária nacional de Educação Básica, Kátia Schweickardt. “A gente precisa desmitificar a ideia de que os livros não precisam relatar a realidade dessas crianças (negras). Eu, como professora, sempre procurava levar exemplos dessa maneira, trabalhando com casos de pessoas de favela que chegavam a lugares que outras pensavam que não chegariam”, relata Anielle Franco.

A professora Matilde Ribeiro era a ministra da Igualdade Racial quando a Lei 10.639 foi sancionada, em 2003. “Vinte anos é muito tempo para as nossas vidas, mas pouco em termos históricos. Por outro lado, também vejo uma morosidade maior, uma falta de compreensão da importância da lei por parte das autoridades, dos gestores e até mesmo de muitos professores”, lamenta. “Sinto que falta uma ação coordenada, que passe pelo Ministério da Educação e pelas secretarias estaduais e municipais, até a inclusão desse conteúdo no planejamento pedagógico das escolas.”

Professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, a Unilab, Ribeiro observa que os gestores públicos têm todos os instrumentos necessários para garantir a aplicação da lei e promover a igualdade racial no campo da educação. “Já temos todas as diretrizes para a educação étnico-racial, a educação quilombola, a educação indígena. É o fruto de décadas de trabalho conjunto entre os órgãos governamentais e a sociedade civil organizada. Passados 20 anos, vamos encontrar numerosas experiências exitosas, de iniciativa dos próprios professores, mas nem sempre essas ações passaram pelo crivo da direção ou foram incluídas como parte do currículo, enfim, do planejamento pedagógico daquela escola.”

Exemplo. Ao lecionar, a hoje ministra buscava valorizar o protagonismo negro – Imagem: José Cruz/ABR

Na avaliação de Ribeiro, o que preocupa não é somente a ausência ou o pouco destaque dado à História e Cultura Afro-Brasileira, mas a qualidade dos livros nas escolas em geral. “O material didático é pouco atraente para os alunos. E, quando aborda a questão racial e de gênero, deixa muito a desejar. Por meio dos editais, o Poder Público pode incentivar a produção de novos livros didáticos, mais consistentes e atrativos, e em larga escala.”

Presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, Iraneide ­Soares da Silva trabalhava no Ministério da Educação quando a lei foi implementada. Ela conta que, à época, foram desenvolvidas diversas ações para a disseminação da iniciativa, mas depois elas foram descontinuadas. “Realizamos muitos eventos, com os movimentos sociais, a sociedade civil organizada e as secretarias de Educação. A ideia era identificar as dificuldades para a implementação da lei e propor intervenções. Nesses fóruns, os participantes sempre apontavam a falta de material pedagógico e as deficiências na formação dos professores como os maiores entraves.”

Dez anos após esses encontros, prossegue a professora, o Ministério da Educação lançou um edital, em parceria com a Unesco, para fazer uma pesquisa nos estados e aferir como a lei estava sendo aplicada. Para espanto dos pesquisadores, o relatório apontou que os problemas ainda eram os mesmos: falta de material didático e deficiência na formação dos professores. “A Lei é conhecida nas escolas, mas não foi acolhida com o cuidado e a transversalidade de que precisa. Tudo isso, claro, tendo como pano de fundo o racismo, impregnado no modelo de educação que temos.”

Walmir Siqueira é professor de Língua Portuguesa na rede pública de São Paulo e integra o Coletivo Milton ­Santos Contra a Discriminação Racial da ­Apeoesp, o sindicato dos professores no estado. Militante antirracista, ele não titubeia: “Institucionalizou-se o racismo. Depois de 20 anos, a educação antirracista já era para ser tratada com naturalidade, os professores deveriam ter recebido essa formação”, afirma. “Se existisse um projeto educacional antirracista de fato, teríamos uma sociedade mais justa e menos violenta. Nas escolas públicas, a população negra continua marginalizada. Os alunos pretos e pardos ainda são tratados com desconfiança, são considerados os piores alunos, chamados de preguiçosos. Há uma série de adjetivos pejorativos, dos tempos da escravidão, que ainda vemos em sala de aula.”

No município de São Paulo, durante a gestão de Fernando Haddad (2014-2018), hoje ministro da Fazenda, houve uma tentativa de disseminar a lei. “A questão racial era tratada como uma política pública dentro da Secretaria de Educação, que fez incluir, no material didático, livros de literatura africana, fez abordar isso no dia a dia da escola. Isso fazia parte do currículo, mas as ações acabaram interrompidas com a troca de governo.”

Anielle Franco diz ser preciso investir na produção de livros didáticos com pensamento decolonial

À margem do Estado destacam-se algumas iniciativas de educação decolonial, como cursinho pré-vestibular da Uneafro, destinado a jovens e adultos oriundos de escolas públicas, prioritariamente para negros e negras. Coordenador de um dos núcleos de ensino, Adriano Souza conhece bem a rotina na rede pública e observa que a educação antirracista ainda está restrita, em muitas escolas, às atividades recreativas no Dia da Consciência Negra.

“Quando precisa lidar com questões da cultura afro-brasileira, seja de recorte histórico, como as religiões de matriz africana, sejam manifestações artísticas contemporâneas, como o rap e o funk, a escola não sabe o que fazer”, lamenta. “Da mesma forma, não sabe lidar com a discriminação que acontece dentro do ambiente escolar, no dia a dia.”

A questão da representatividade é outro impasse. A Uneafro procura sempre trazer intelectuais negros para as atividades desenvolvidas pelo grupo, algo que muitas escolas negligenciam. “Os jovens negros precisam ter essa referência, esses saberes. Para os estudantes, a educação decolonial é um mundo quase desconhecido, é como se pessoas negras não pudessem pensar, não pudessem produzir nada que não fosse trabalho braçal.” •

Publicado na edição n° 1253 de CartaCapital, em 05 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Descaso intolerável’

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