Rita von Hunty

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Drag queen intepretada pelo professor Guilherme Terreri

Opinião

Não temos nada a perder, a não ser os nossos grilhões

Não ceder à paralisia do medo nem à tristeza da maldade é o primeiro passo

Rita Von Hunty (Foto: Reprodução/Redes sociais)
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“Nós vivemos um período crítico: quem não se apoderar dele não pode compreender nada do mundo.” É o que se lê na décima primeira inscrição do manifesto redigido pela comissão nous sommes en marche (estamos em marcha), em 1968, como resultado dos trabalhos de insurgência e organização política dos estudantes da Sorbonne. O momento histórico era outro, bem diferente deste que vivemos agora. Chega a parecer, a nós cidadãos da distopia bolsonarista, um sonho. 

Dez anos após sua revolução, Cuba avançava em direção prodigiosa, Angola vencia Portugal nas batalhas de sua luta anticolonial, os EUA (até então mundialmente famosos como invictos em guerras) viam a força dos vietnamitas os expulsando e recobrando seus territórios, a França eclodia em movimentos sociais. A atmosfera do período inspirava todo coração jovem a sonhar com um futuro possível, em direção oposta à opressão e à exploração humana. Aqui no Brasil, vivia-se o ano que ficaria marcado pela entrada na fase mais fraudulenta, descarada e violenta da ditadura civil-militar. Mais uma vez, estávamos na contramão do ethos de transformação de uma era.

Evocar esse desalinhamento cumpre duas funções: a de situar nossa percepção no fato de que as elites dirigentes no Brasil têm projetos retrógrados, alienados, violentos e desumanos. Não há, para essas elites, projeto de país, apenas projeto de manutenção de privilégios; e lembrar que até que haja uma mudança profunda e estrutural nos acessos e distribuições das riquezas socialmente geradas e do bem-estar possível continuaremos na contramão do sonho, em direção ao pesadelo, suscetíveis às manobras políticas que não atendem os nossos interesses, e enganados por aqueles que há muito entenderam aquilo que Contardo Calligaris nos advertira: quando o brasileiro médio pede ordem, ele está pedindo violência.

 

O que falta para que as coisas mudem? Fomos roubados de nossas possibilidades de futuro, e isso não em sentido figurado, mas denotativo mesmo. Mais de 422 mil brasileiros tiveram suas vidas ceifadas por um Estado Suicidário. As taxas de mortes em UTIs chegaram a 80%, em regiões e estados, faltam medicamentos para a entubação dos pacientes. Somos um povo que morre vítima de uma doença para a qual existe vacina. Vacina que teve sua possibilidade de compra recusada (como consta documentado) mais de 11 vezes pelo presidente da República. Presidente que em recente declaração estapafúrdia ofendeu e acusou o maior parceiro comercial do Brasil de ter criado o vírus da Covid-19 em laboratório, num cenário de guerra biológica. Em resposta, a China acaba de paralisar o envio de mais de 10 mil litros de insumos para a fabricação de vacinas em nosso território. 

A lista de absurdos não para por aí. A esta altura, estamos familiarizados com as estratégias (por vezes declaradas) do governo Bolsonaro de gerar múltiplos “focos de incêndio” para pulverizar a capacidade de reação e indignação da opinião pública. Além das cortinas de fumaça criadas reiteradamente para desviar a atenção dos escândalos de corrupção e dos crimes envolvendo sua família ou o chamado “núcleo duro” do governo. Como o desastroso ministro à frente da pasta do Meio Ambiente, Ricardo Salles, havia explicitado: fazem o que for preciso para “passar a boiada”. E ela tem passado.

 

O desmonte do Estado brasileiro segue em curso, favorecendo interesses entreguistas, privatizadores e corruptos que resultam em uma realidade difícil de conceber. A Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, eleita a melhor instituição de ensino superior do País, está sob ameaça de fechamento, devido a uma redução orçamentária que, segundo declaração da reitora e do vice-reitor, tornará impossível que as contas básicas como água, segurança e energia sejam mantidas. A CPI da Pandemia sofre toda a sorte de atravanques e retardamentos, para que não haja tempo de responsabilizar os óbvios culpados pelo estado de calamidade em que nos encontramos. E o maior e mais absurdo esquema de corrupção orçamentária de que tivemos notícia: o “tratoraço” ou “bolsolão”, que destinou, em mais de 101 ofícios de deputados e senadores, um valor de 3 bilhões de reais em emendas para a “compra” de congressistas e a “blindagem” de Bolsonaro em uma possível abertura do processo de impedimento. 

Como devemos responder à irracionalidade abismal de uma horda sem empatia nenhuma com o nosso povo? Não ceder à paralisia do medo nem à tristeza da maldade é o primeiro passo. Articular redes de solidariedade e conexão real entre indivíduos, reavivar e ascender em todas elas o senso de comunidade e coletividade e, mais que nunca, lembrarmo-nos uns aos outros de que não há mal que dure para sempre e que, defrontados com essas correntes subterrâneas de um Brasil violento, indiferente, nojento e assassino, podemos olhá-lo de frente e recusar a nos vermos assim. Não temos nada a perder, a não ser os nossos grilhões.

Publicado na edição nº 1157 de CartaCapital, em 13 de maio de 2021.

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