

Opinião
Lei Magnitsky contra Moraes é uma grave violação do direito internacional
Cabe ao Brasil responder à altura, seja impondo sanções ou recorrendo à Corte Internacional de Justiça
O Brasil foi surpreendido nesta quarta-feira 30 pela inclusão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), na lista de sancionados pelo governo estadunidense sob sua Lei Magnitsky (“Global Magnitsky Human Rights Accountability Act”, de 2016), norma com alcance extraterritorial que visa a punir pessoas envolvidas em atos de corrupção e graves violações de direitos humanos cometidos fora dos Estados Unidos.
Ainda que referida lei seja relativamente recente, ela se ajusta à tendência que vem se consolidando no direito estadunidense desde o caso Filartiga v. Peña-Irala de 1980. Na tradição desse precedente, os EUA vêm aplicando seu direito de forma expansiva a fatos e relações jurídicas com sede em outros países. A tônica é que o direito das Nações, isto é, o direito internacional, é parte do direito dos EUA e, por isso, cabe-lhe, implementá-lo dentro de suas fronteiras. Se uma pessoa ou um governo viola esse direito e a vítima dessa violação acorre à Justiça estadunidense, esta terá, sob certas condições, jurisdição para fazer reparar o dano pelo ato violador.
Tanto no caso do paraguaio Joel Filartiga quanto na motivação da lei que levou o nome do russo Sergey Magnitski, o que recorrentemente esteve em discussão é grave violação de direitos humanos, como a tortura seguida de morte praticada por agentes de Estado. Trata-se, sem dúvida, de uma das mais egrégias violações no regime jurídico de proteção internacional dos direitos humanos. A proibição da tortura é, de um modo geral, reconhecida como norma de direito costumeiro internacional, por corresponder a um consenso universal sobre sua validade.
Quando, porém, o governo de Donald Trump decidiu aplicar sanções patrimoniais e proibição de ingresso em território estadunidense ao ministro Alexandre de Moraes, nenhuma violação de consenso universal sobre direitos humanos estava em jogo. Não se tem notícia de prática de atos de tortura ou equiparáveis em gravidade pelo magistrado brasileiro. Nem de atos de corrupção, a que a lei estadunidense de 2016 também se aplica. A motivação de sua inclusão na lista de sancionados sob a Lei Magnitsky é unicamente o exercício da jurisdição no STF. Acusa, o governo de Donald Trump, de estar, o magistrado, a censurar plataformas sociais da internet e a perseguir politicamente o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Muito mais do que defender a validade de uma norma protetiva internacional, o governo estadunidense está a se dar o direito de interferir na jurisdição brasileira voltada a julgar personagens e fatos que dizem respeito ao direito brasileiro, a saber, o ataque a suas instituições nacionais democráticas protagonizado, supostamente, por um ex-chefe de Estado brasileiro não conformado com sua derrota em eleições regulares, realizadas segundo a lei brasileira. Nada disso diz respeito, de perto, à violação de normas caras à comunidade internacional e, muito menos, aos assuntos que devem interessar aos Estados Unidos da América do Norte.
Pelo contrário. No direito internacional que, segundo o constitucionalismo estadunidense, é parte do direito daquele país, a intromissão estrangeira em assuntos da exclusiva jurisdição doméstica de um país é vedada. Basta lembrar que o artigo 2 (7) da Carta da ONU estabelece que “nenhuma disposição da presente Carta autoriza as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição interna de qualquer Estado, nem obrigará os membros a submeterem tais assuntos a uma solução nos termos da presente Carta.” Se nem à ONU cabe, sob o direito internacional, se meter na jurisdição doméstica exclusiva de um Estado-membro, muito menos deve-se reconhecer tal prerrogativa a outro Estado.
A intromissão do governo de Donald Trump no exercício independente da jurisdição do STF, na verdade, é uma grave violação do direito internacional. Nenhum Estado pode se arrogar o direito de constranger juízes independentes de outro Estado a julgar segundo valores e ideologias de governos passageiros, estranhos à Constituição do Estado jurisdicionante. E, por ser esta uma grave violação das regras que devem disciplinar relações amistosas entre Estados e uma prática contrária à “igualdade soberana dos Estados”, princípio básico da Carta da ONU (art. 2), não pode compor o direito interno dos EUA e nem encontrar abrigo em seu constitucionalismo, tratando-se de verdadeiro desvio de finalidade da própria Lei Magnitsky.
Cabe ao Brasil responder à altura, seja impondo sanções sobre ingresso em território nacional a quem e o patrimônio de quem impôs ou conspirou para a imposição dessas ilegais sanções, seja recorrendo à Corte Internacional de Justiça, para demandar o desfazimento dessa grave violação do direito internacional. Talvez até a Corte Suprema dos EUA possa e deva ser provocada a se manifestar a respeito, barrando a flagrante violação a seu constitucionalismo.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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