Aldo Fornazieri

Doutor em Ciência Política pela USP. Foi Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), onde é professor. Autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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Leão realojado

Flávio Dino é mais necessário na política do que no Supremo. O governo acaba de perder seu mais combativo ministro

Adriano Machado/Reuters
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O governo Lula perde com a indicação de Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal. A perda maior é de natureza política. ­Dino é o mais combativo dos ministros de Lula. É o único leão do governo, no sentido maquiaveliano. Não teme o embate com os inimigos. Se Dino é a expressão da força, Fernando Haddad, o ministro da Fazenda, é o melhor articulador, a expressão do convencimento, o lado raposa do governo.

A ala política do governo Lula tem se mostrado frágil e inexpressiva, coadjuvante tanto do Congresso quanto do próprio STF. Os demais ministros da cozinha do Planalto estão mais para tranquilos e dóceis, low profile. Dificilmente Lula encontrará um substituto de Dino capaz de combinar a competência técnica para tocar a pasta da Justiça com a exuberância do embate político que vinha exercendo.

A pergunta que deve ser feita é a seguinte: Dino é mais imprescindível como ator político do governo ou como ministro do STF? A resposta é óbvia: Dino é mais necessário à política do que na Suprema Corte. O Brasil vive uma carência de líderes políticos no sentido forte do termo. Refiro-me aos líderes capazes de imprimir direção e sentido aos acontecimentos políticos. Com a indicação de Dino para o tribunal, ele deixa de ser também uma alternativa de candidatura presidencial no futuro.

O atual quadro de ministros do STF vem desempenhando suas funções de forma eficaz, principalmente no que tange à defesa do Estado Democrático de Direito e da guarda da Constituição. Lula teria facilidade de encontrar outros bons nomes capacitados a integrar e complementar o tribunal. Em contrapartida, não existe um quadro visível na política que possa substituir o atual ministro da Justiça à altura.

Dino, certamente, preenche os critérios, listados no artigo 101º da Constituição, para ser indicado como ministro do STF. Os preenche tanto no sentido formal quanto no sentido substancial. Do ponto de vista formal, tem mais de 35 anos e menos de 70, e possui “notável saber jurídico e reputação ilibada”. O que vem sendo problematizado é o sentido vago desses critérios. O que é o “notável saber jurídico”?

Essa noção nasceu no mundo acadêmico para suprir uma insuficiência fornecida pelo critério formal do conhecimento ou do saber. Isto é, a quantidade­ de títulos de graduação, mestrado e doutorado que um profissional acumula. Observou-se que existem pessoas possuidoras de conhecimentos e saberes sem que sejam portadoras de títulos formais, e que, muitas vezes, suplantam até mesmo os conhecimentos dos titulados.

Entendeu-se que essas pessoas estão habilitadas a exercer atividades concernentes ao seu conhecimento. Para isto, criou-se a expressão “notório saber”. Essa expressão indica que é do conhecimento público, evidente e notado de que ela é portadora desse saber qualificado. Esse saber é evidenciado pela prática profissional, pelas pesquisas e pelas publicações de artigos e livros. Em alguns casos, as universidades conferem a essas pessoas o título de Doutor Honoris Causa.

Na polêmica instaurada no canal ­GloboNews entre os comentaristas Demétrio Magnoli e Gerson Camarotti, o último tem razão: o exercício de um cargo público pode indicar notório saber. O simples exercício, em si, é insuficiente. Mas o extraordinário desempenho de um sujeito em certa função pode ser qualificação para o notório saber.

Dizer que Dino não tem conhecimento para ser ministro, como alega Demétrio, é desmentido tanto do ponto de vista formal quanto do ponto de vista substancial. Do ponto de vista formal, Dino tem os títulos de graduação em Direito e de mestre em Direito Público, além de ter sido aprovado em concurso de juiz. Do ponto de vista substancial, no exercício de suas diversas funções políticas, de governador a ministro da Justiça, sempre evidenciou publicamente conhecimento jurídico, o que é notório saber.

Por fim, é preciso dizer que os critérios constitucionais para a indicação de ministros para o STF precisam ser mais bem definidos. Além dos títulos formais e do notório saber, precisam considerar o espírito do nosso tempo. E ele traz duas demandas inquestionáveis e crescentemente exigíveis: a equidade de gênero e a diversidade étnica.

No caso de um país grande, diverso e federativo como o Brasil, há ainda outro critério: o de uma equidade de representação regional. Se é verdade que Dino vem do Nordeste, região historicamente subrepresentada na Suprema Corte, o fato é que Lula perdeu a oportunidade de satisfazer esses outros critérios. Os teria contemplado se tivesse indicado uma mulher negra, nordestina, qualificada e comprometida com a garantia dos direitos, da Constituição e da democracia. •

Publicado na edição n° 1288 de CartaCapital, em 06 de dezembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Leão realojado’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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