

Opinião
Guerreiras acolhidas
Se as brasileiras em geral não se sentem protegidas pelo Estado, imaginem as mulheres indígenas, com todas as barreiras culturais, linguísticas e raciais


Os povos indígenas estão fazendo história. Em 2023, nosso reflorestar chegou com a força das mulheres, movimento que fez brotar a Bancada do Cocar. Nesta semana, nosso mandato protocolou na Câmara dos Deputados o primeiro Projeto de Lei traduzido em língua indígena do Parlamento brasileiro. Recentemente, há pouco mais de um mês, o Brasil publicou a primeira Constituição em idioma indígena. Queremos avançar, agora, com a tradução de todos os projetos apresentados no Legislativo.
Durante a 3ª Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, após um amplo processo de consulta em nossos territórios, protocolamos o Projeto de Lei 4381/2023, a prever a criação de uma política nacional de combate à violência contra as mulheres indígenas. Além de pensarmos no atendimento das especificidades desse grupo, inovamos no jeito de fazer política, com uma proposição baseada em alargada participação popular. Ao traduzir esse projeto, pretendemos alcançar um número ainda maior de partícipes.
Hoje, fala-se muito sobre a violência de gênero e obtivemos reais avanços na legislação. As mulheres indígenas permanecem, porém, à margem desse processo. Vamos refletir um pouco: sofremos, todas nós, violações equivalentes? Sabemos que não. Se as brasileiras em geral não se sentem protegidas pelo Estado, se enfrentam numerosos obstáculos para serem acolhidas na rede de proteção, imaginem as mulheres indígenas, com todas as barreiras culturais, linguísticas e raciais existentes.
Somos as guerreiras da ancestralidade, jamais fugimos à luta de nossos povos, geralmente travada do lado de fora do Parlamento. Precisamos, porém, trazer essa batalha para dentro da Câmara e do Senado. É tempo de priorizar as lutas que são essencialmente nossas. Se, em nosso modo ancestral de convivência, nos fortalecemos na unidade, aprendemos que a política também dever ser feita na base da união.
Sou do Cerrado. Venho de Minas Gerais, com suas águas e montanhas. Fortaleço-me, ainda, na luta das mulheres da Amazônia, da Caatinga, da Mata Atlântica, do Pantanal e dos Pampas. É com a força da Mãe Terra que queremos combater a violência contra as nossas. Se, na luta dos povos indígenas, falamos que nossa relação com a terra e os nossos corpos-territórios são essenciais para salvar a vida no planeta, é igualmente urgente pensar em políticas que protejam a vida das mulheres indígenas.
Nesta mesma Casa em que conquistamos alguns direitos, também avançam projetos de genocídio e etnocídio legislado. Precisamos resistir e usar a caneta para preservar tanto os biomas quanto as mulheres indígenas de nosso país. Apresentamos um Projeto de Lei de combate à violência contra as mulheres indígenas exatamente porque não podemos contar apenas com as leis existentes. Há uma importante legislação em defesa das brasileiras em geral, mas que não contempla os nossos modos de vida e necessidades. Nossos corpos têm relação direta com a terra que habitamos, são corpos territorializados. Por isso, também defendemos uma educação territorializada, uma saúde territorializada, uma segurança territorializada.
O Brasil bateu recorde de violência de gênero em 2022, com uma mulher assassinada a cada seis horas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Os feminicídios aumentaram 6,1%, totalizando 1.437 mortes, enquanto as tentativas cresceram 16,9%, na comparação com o ano anterior. Sabemos que a subnotificação de casos é enorme, sobretudo quando falamos das mulheres indígenas. E é por isso mesmo que, a despeito dos inegáveis avanços trazidos pela Lei Maria da Penha, decidimos propor uma legislação que contemple as nossas especificidades.
Desde a Independência, o Brasil demorou 196 anos para eleger a primeira deputada federal indígena. Demorou quase 200 anos para ter uma mulher indígena presidindo uma comissão parlamentar. Mais de dois séculos para ter uma ministra dos Povos Indígenas. Com o apoio da Bancada do Cocar e a força de nossas guerreiras da ancestralidade, estamos do lado de dentro do Congresso Nacional, lutando por direitos e reparação.
Da mesma forma, estamos aqui para lembrar que o futuro é indígena, é ancestral e é feminino. Com a força da reza das mulheres Guarani, barramos a PEC 215. Com a voz potente da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, fazemos o nosso reflorestar. Nossos corpos são raízes que se fincam também nesse chão, na forma de uma legislação que nos contemple. Nossos corpos-território coloriram o Congresso. Contra violação somente a mulheração! •
Publicado na edição n° 1277 de CartaCapital, em 20 de setembro de 2023.
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