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Golpismo e justiça

A luta contra a tentação autoritária não deve reduzir-se à resposta da violência estatal

Imagem: Fellipe Sampaio/STF
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Desafios públicos, quando solucionados isoladamente pela violência estatal, tendem a estender a crise ou dar a ela outra dimensão. Um problema público indesejavelmente gera, nesta situação, um segundo problema público.

O terrorismo nos Estados Unidos e na Europa gerou uma crise e seu combate, uma segunda crise. A violência estatal adotada engendrou um segundo problema público, relacionado às medidas severamente restritivas e xenófobas contra estrangeiros, à prática de tortura, aos processos penais de exceção e ao encarceramento desumano e degradante sem precedentes.

No Brasil, um emblemático exemplo de que um problema público, quando inadequadamente enfrentado, gera uma segunda crise pública está relacionado ao combate à corrupção. Este sempre foi um problema grave do nosso Estado e da nossa sociedade. A corrupção é, entre nós, geradora de cíclicas e constantes crises. Entretanto, quando se quis, na nossa história recente, responder exclusivamente por meio da violência estatal, gerou-se outro problema: o lavajatismo, que interferiu no nosso processo republicano e contribuiu decisivamente para o advento do bolsonarismo.

O Supremo Tribunal Federal, apesar de erros episódicos, tem conseguido garantir a defesa da democracia sem, estruturalmente, abusar de poderes. Entretanto, o Supremo adota, por sua natureza institucional como Poder Estatal, precipuamente, o mecanismo da força física legítima, para impor seus comandos, mas a ação de defesa da democracia, para ter real eficácia, não deve aí se esgotar. Cabe à sociedade civil expandir as ações do sistema de Justiça em defesa da democracia para outros ambientes da sociabilidade

O constrangimento moral, político e social é absolutamente fundamental para a eficácia da defesa da democracia. Não basta apenas a violência estatal. É necessário que a sociedade, evolutivamente, entenda que a democracia é um valor universal inerente à própria vida política civilizada, com vistas a gerar um efeito constrangedor para aqueles que queiram se colocar contra ela. O uso de linguagens desumanas, de ódio, de violência, e as propostas destruidoras da democracia devem ser inibidos por uma reação social contrária. O ambiente social deve ser capaz de, por meio do compromisso irrenunciável com os valores democráticos, constranger os autores de atos antidemocráticos a recuar na exposição pública antidemocrática. Quem ataca a democracia e usa do discurso de ódio deve ser constrangido moral e socialmente a não o fazer, deve ter vergonha de tal conduta. Ou seja, o constrangimento moral, social e político é absolutamente fundamental para que o elemento repressivo em favor da democracia seja eficaz. A luta em favor da democracia não pode limitar-se ao uso da violência legítima do Estado, mas se espraiar para o ambiente social. A luta contra o golpismo não deve reduzir-se à resposta da violência estatal. É imprescindível que o combate ganhe novos ambientes.

Outro aspecto relevante quanto às cautelas necessárias no combate ao golpismo e na defesa da democracia é que o Judiciário deve promover uma prestação jurisdicional isenta de abusos. É preciso o cumprimento estrito à Constituição e à lei, inclusive para que não se criem mártires e um ambiente social antagônico à luta pela democracia. Por todas essas razões, consignamos que a defesa da democracia não pode engendrar um segundo problema público. A violência estatal é insuficiente para, com eficácia, responder à repressão dos ataques à democracia. Por outro lado, ela deve ser utilizada com cautela para não se transformar em um segundo problema público, estendendo a crise.

A cautela no uso da violência não significa que ajustes não possam ser admitidos, inclusive no plano do processo legislativo, como agora são propostos pelo governo federal. O aprimoramento da tipificação dos crimes antidemocráticos deve, em especial, evitar a adoção de conceitos jurídicos indeterminados, isto é, a evolução legislativa, a qual, inclusive, pode ­manifestar-se pelo aumento de penas, deve sempre se atentar à especificação, de forma muito clara, dos crimes a serem punidos.

O bolsonarismo representou, e ainda representa, o mais cruel e intenso movimento de destruição e solapamento da democracia brasileira. A crise enfrentada não pode, em hipótese alguma, gerar um segundo problema de efeitos cíclicos catastróficos para a democracia e para os direitos fundamentais. É preciso cautela no combate ao golpismo e na defesa da democracia. O desafio sem precedentes não pode ser solucionado, exclusiva ou preponderantemente, pela violência estatal, sob pena de se estender a crise ou dar a ela outra dimensão. •

Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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