Frente Ampla

Tribunais desprotegem mulheres com conceito reduzido de ‘violência baseada no gênero’

Critérios exigidos não estão previstos na Lei Maria da Penha e violam o direito de proteção e de acesso das mulheres à justiça

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
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O mesmo país que ostenta com orgulho ter uma norma como a Lei Maria da Penha viu, ao longo dos 16 anos de sua vigência, inúmeras dificuldades para sua completa aplicação. A princípio, esses obstáculos se concentravam na lenta efetivação dos instrumentos que garantissem o enfrentamento à violência doméstica contra a mulher. A Lei precisava de varas especializadas e de uma rede multidisciplinar de apoio para acolher as mulheres e seus filhos; capacitar profissionais; reeducar e punir agressores.

Este artigo, escrito em conjunto por quem relatou a lei e por quem integrou o Consórcio que elaborou o anteprojeto de lei, propõe um debate nesses 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher para que as dificuldades sejam visibilizadas e ultrapassadas. Enfrentamos, durante o processo de elaboração da lei,  a contrariedade de juízes de juizados especiais criminais que insistiam em manter esses juizados como fóruns de decisão para os casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres. Hoje, as dificuldades enfrentadas referem-se aos entendimentos dos tribunais sobre a “violência baseada no gênero”. Tribunais têm reduzido a interpretação deste conceito e deixado de aplicar a lei a inúmeras situações de violência doméstica e familiar previstas na legislação.

A consequência dessa interpretação é a desproteção das vítimas.  Em 2015, o Superior Tribunal de Justiça posicionou-se no sentido de que, para a aplicação da Lei Maria da Penha, “não é suficiente que a violência seja praticada contra a mulher e numa relação familiar, doméstica ou de afetividade, mas também há necessidade de demonstração da sua situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência, numa perspectiva de gênero”. (STJ, AgRg no REsp n. 1.430.724/RJ, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., j. 17/3/2015, DJe 24/3/2015).

A Lei está fundada nos princípios da prevenção, proteção e punição previstos na Convenção de Belém do Pará e que têm sido sistematicamente aniquilados pela restritiva interpretação judicial. Observa-se que a lei tem deixado de ser aplicada a casos em que há conflitos colaterais, disputas em relação à guarda dos filhos, violência de irmão contra irmã, de neto contra avó, em conflitos patrimoniais e até em casos em que o agressor estava alcoolizado ou sob efeito de drogas lícitas ou ilícitas no momento da agressão, entre outras situações.

Os critérios exigidos de vulnerabilidade, hipossuficiência, motivação de gênero, subordinação, dependência econômica, apenas para citar alguns, não estão previstos na Lei Maria da Penha e violam o direito de proteção e de acesso das mulheres à justiça.

Preocupados com esses graves precedentes e suas consequências imediatas para o direito das mulheres em situação de violência doméstica, um grupo de profissionais de direito em conjunto com integrantes do Consórcio da Lei Maria da Penha propuseram algumas mudanças objetivas na Lei para que interpretações “inusitadas”, que destoam do objetivo protetivo da lei, não tenham lugar. Fazemos questão de relembrar que nomear a violência doméstica e dar-lhe o devido lugar foi uma luta árdua. Lembremos que a criação dos juizados especializadas de violência contra a mulher na Lei Maria da Penha com competência híbrida, com o objetivo de evitar a peregrinação e, portanto, a revitimização das mulheres na busca por justiça, ainda está pendente.

Observando a sucessão de decisões pelo país e o que poderia ser feito para manter os casos na competência das varas especializadas de violência doméstica, face os inúmeros conflitos de competência suscitados por magistrados, nasceu, pelas mãos do Consórcio, o PL 1.604/2022, acolhido pela Senadora Simone Tebet, após uma série de debates sobre tema. O texto inicial foi aprimorado e apresentado em junho deste ano.

A justificativa do projeto é elucidativa da dimensão do problema e demonstrada por inúmeras pesquisas, dentre elas, a de Thiago Pierobom e Christiane de Paula (2020). Conforme identificaram os autores, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) afasta a aplicação da LMP em casos de violência entre irmãos em 89% dos casos sob o argumento de suposta ausência de “motivação de gênero”, ou ainda, pelo fato de o ofensor ser usuário de drogas, ausência de vulnerabilidade ou inferioridade financeira da vítima, ausência de dependência hierárquica da mulher em relação ao ofensor, a ausência de coabitação com o ofensor ou conflitos patrimoniais.

Por essa razão, há necessidade de evitar-se a aplicação restritiva da Lei, para que as mulheres não fiquem sem proteção. Esperamos comemorar o dia 25 de novembro, Dia Internacional de Eliminação da Violência Contra a Mulher, com a aprovação do texto no Senado Federal. É uma questão de justiça para as mulheres preservar o ideário que fundou a Lei Maria da Penha: a prevenção e a proteção das mulheres.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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