Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Folha, a serviço da antidemocracia

Diante de um governo de esquerda, mais especificamente de um governo petista, essa grande imprensa não hesita em buscar uma oposição, mesmo que ela, a rigor, sequer exista

Foto: EVARISTO SA/AFP
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Infelizmente, era previsível. Alguma surpresa pode ser colocada na conta da coincidência com a data em que militares e congêneres – e o bolsonarismo em uníssono – comemoram o golpe de 1964. 

Hoje, a Folha de S. Paulo publicou um editorial que é concluído da seguinte maneira: “Opondo-se ao petismo, o bolsonarismo pode dar vigor à política brasileira – desde que abandone a violência, a atitude antidemocrática e a polarização irracional”. Se formos apenas atentar para o léxico da coisa, trata-se de um curioso oximoro: o bolsonarismo pode ser pura virtude, contanto que deixe de ser bolsonarismo. É mais ou menos como elencar enormes virtudes e contribuições à humanidade vindas de Adolf Hitler se ele não tivesse feito tudo o que fez. “Era um rapaz tão bom, uma pena que…”

Em lance com ares de ineditismo, o jornal publicou uma errata em seu site horas depois. E assim ficou: “O bolsonarismo até poderia, se abandonasse a violência e o autoritarismo, liderar uma oposição saudável ao PT. Esse não é infelizmente, o desfecho mais provável”. A coisa parece ter sido feita tão às pressas que até na pontuação elementar pecaram. Mas, para todos os fins, como se vê, mudou-se a ordem das palavras, acrescentou-se uma futurologia de pesar e manteve-se a essência: a regra é manter a naturalização do bolsonarismo e o desejo de mantê-lo vivo no jogo (da antidemocracia, diga-se). 

E isso vem de longe, ao menos desde 2018, quando, apesar do histórico e da ficha corrida do ex-capitão do Exército, não faltaram vozes mediáticas vendendo-o como um personagem eleitoral que abandonaria a fantasia uma vez presidente e convertendo falas atrozes e desprovidas de polissemias em arroubos retóricos sem maiores consequências, vide a apologia à tortura e a idolatria declarada a um torturador, para ficarmos em um de centenas de exemplos. 

Este editorial de Folha sacramenta algo que já vinha sendo desenhado na cobertura da grande imprensa ao menos há duas semanas, conforme fiz questão de sublinhar neste espaço na semana passada: o espaço de cobertura extremamente generoso dado a figuras centrais da extrema-direita brasileira e até mesmo internacional. Entrevistas com general Hamilton Mourão, Flávio Bolsonaro, matérias e mais matérias sobre lágrimas do Pai Jair, as tantas investidas políticas e comerciais de Michelle Bolsonaro, uma entrevista enorme com Steve Bannon –  sem mencionar a enorme atenção dada a falas e discursos do ex-presidente em seu retorno ao Brasil após sua fuga para os Estados Unidos. 

Muitos argumentam que, no caso das duas primeiras personagens, temos o cargo de senador, o que justificaria a atenção dada. Curiosamente, além deles, há mais 79 senadores. Não. Ocupar uma cadeira no Senado Federal não é o critério explicativo. 

Não há precedente desde a redemocratização. Nunca um presidente e uma ex-primeira-dama foram tratados com a mesma atenção de quando ainda exerciam, respectivamente, seus cargos. O fato de Sergio Moro ter recebido a mesma atenção, inclusive com ainda maior generosidade jornalística, típica dos tempos áureos de sua Operação Lava Jato, é demonstrativo da ocorrência do mesmo fenômeno que faço questão de explicar. 

Diante de um governo de esquerda, mais especificamente de um governo petista, essa grande imprensa não hesita em buscar uma oposição, mesmo que ela, a rigor, sequer exista. Por quê? Porque é um camuflagem bastante astuta para criar frentes de desestabilização a esses governos, climas de opinião desfavoráveis, usando falas e discursos de terceiros que podem e são vendidos como jornalismo declaratório quando, ao bem da verdade, representam muito mais posições editoriais. 

Percebam, caros leitores, que nada disso existiu sob o governo Bolsonaro. Havia figuras de oposição no Parlamento e em outras instâncias? Sem dúvidas, principalmente à esquerda. Aos montes. Quantos e com qual frequência eram ouvidos para criticar o governo Bolsonaro e fazer conjecturas sobre a conjuntura política? Desculpem os que viram uma grande imprensa profundamente aguerrida contra Jair Bolsonaro e seu governo: esse é só um dos indícios de que o tratamento passou longe de ser algo similar aos tratamentos dispensados aos petistas da Presidência. 

Volto ao editorial, afinal, temos ali uma síntese muito bem lapidada do que vimos no geral da cobertura política das últimas semanas e do que, certamente, está por vir. 

No Brasil descrito naquele texto, o governo dos crimes praticados em série, do aparelhamento político de órgãos do Estado, das inúmeras tragédias e atentados contra a vida, da dilapidação da Fazenda Pública para fins de tentativa de compra de voto, do esfacelamento de órgãos de controle e da perseguição política a funcionários públicos e opositores, a rigor, não existiu. No máximo pesa contra ele a burla a algumas regras, a algumas liturgias e a alguns protocolos, além de uma singela postura populista antissistema. Um governo normal. Um presidente comum. 

A ideia de defesa da democracia incorporada como slogan por nossa grande imprensa tem ganhado cada vez mais o sentido dado ao mesmo conceito por bolsonaristas: é possível defendê-la e, ao mesmo tempo, encontrar virtudes potenciais na antidemocracia, no golpismo, no fascismo. Com diz aquele velho ditado satírico da teoria democrática: democracia é quando eu mando em você. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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