Diversidade

Falar de inclusão de pessoas autistas é também pensar em sexualidade

Expressões de gênero e sexualidade de pessoas autistas ainda é pauta negligenciada. Estamos trabalhando a dimensão inclusiva da diversidade?

Série 'Atypical', da Netflix, retrata vivências de um jovem com autismo. Foto: Reprodução
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Neurodivergência é um termo guarda-chuva que abrange as condições do desenvolvimento neurológico humano que se distanciam daquelas socialmente consideradas como o padrão. Dentre as manifestações neuropsicológicas englobadas pelo conceito está o Transtorno do Espectro Autista, relacionado a um desenvolvimento cerebral diferente do encontrado em pessoas neurotípicas que leva as pessoas autistas a desenvolver uma forma atípica de processar informações. O TEA é uma condição ampla e diversa, possuindo variados níveis de influência sobre o desenvolvimento e uma grande amplitude de sintomas, o que dificulta uma definição restritiva. Apesar disso, o seu diagnóstico costuma estar relacionado à incidência de diferentes níveis de dificuldade na interação social e comunicação, assim como apego à repetição e hiperfoco, que podem ser acompanhados de desordem no processamento de informações e de hiper ou hipossensibilidade aos estímulos sensoriais.

Devido à influência do TEA na sua habilidade de comunicação, interação e também na maneira de se comportar, pessoas autistas frequentemente enfrentam dificuldade de socialização. A exclusão de meios sociais é um problema relatado em todas as faixas etárias, o que acaba por reduzir o círculo de relacionamentos dessas pessoas e atrapalhar a sua integração aos ambientes escolares, de trabalho e também nos relacionamentos afetivos.

Entretanto, apesar de poder dificultar o desenvolvimento de seus relacionamentos interpessoais, o TEA não deve ser associado à ideia de que pessoas autistas não podem se relacionar romântica ou sexualmente. Esse mito está diretamente ligado à forma capacitista como a condição é tratada e à estigmatização das pessoas autistas. Por conta disso, existe uma falsa concepção de que pessoas com TEA não se interessam por sexo, ou então que não são capazes de tomar parte em comportamento sexual. É preciso desmistificar a percepção da assexualidade como inerente ao autismo, e a representação tem sido fundamental nesse sentido – na série Atypical, produzida pela Netflix, acompanhamos a vida e relacionamentos de Sam, um adolescente autista trilhando o próprio caminho em busca de autoconhecimento e autonomia. A comédia dramática retrata com sensibilidade as primeiras experiências românticas de Sam, conscientizando sobre a naturalidade dos sentimentos das pessoas no espectro.

Muito distante de ter a sua sexualidade pré-definida pelo desenvolvimento neurológico, pessoas autistas, assim como qualquer outro grupo, podem se identificar com diferentes expressões de gênero e sexualidade. Prova disso é que, quando observamos a relação entre as comunidades autista e LGBTQIA+, pesquisas demonstram que a porcentagem de pessoas que se identificam com alguma das diversas expressões de gênero e sexualidade que não se conformam ao padrão cisgênero e heterossexual é maior entre pessoas com TEA do que entre a da população não autista. Dados coletados pela pesquisadora mineira Sofia Mendonça, mulher trans e autista, revelam que a prevalência de transgeneridade entre pessoas autistas é oito vezes maior do que entre as pessoas que não estão neste espectro. Uma das hipóteses levantadas pelos estudiosos do tema seria de que, por serem menos suscetíveis às pressões de grupo, pessoas autistas teriam mais liberdade para não assimilar comportamentos impostos socialmente em relação às especificidades de gênero e sexualidade.

Para além dos potenciais obstáculos experimentados no exercício da sexualidade – seja por conta das identificações de gênero e sexualidade não convencionais das pessoas LGBTQIA+ ou das barreiras de comunicação a serem transpostas pelas pessoas autistas – outra pauta que une os movimentos identitários é a inclusão. Condições igualitárias de representação e a garantia de segurança para navegar ambientes sociais são demandas que aproximam as articulações políticas de ambos os grupos. No cerne dos movimentos autista e LGBTQIA+ está a luta para que seus integrantes possam desfrutar de condições que os permitam estudar, trabalhar, se relacionar e ter as suas individualidades respeitadas, sendo dever do poder público implementar políticas que visem à inclusão desses grupos em todos os espaços, tendo em vista também a interseccionalidade dessas identidades. Não podemos promover a diversidade sem falar de inclusão, e essa é uma grande lição que os movimentos identitários têm nos ensinado.

Falar de inclusão de pessoas autistas é também pensar em como promover uma aproximação natural e saudável com a sexualidade. Nesse âmbito, uma discussão ainda pouco disseminada é a importância da educação sexual, que assume um papel ainda mais relevante na vida de pessoas com TEA uma vez que a dificuldade de comunicação e leitura de situações sociais não apenas dificultam a sua introdução aos relacionamentos românticos e sexuais, mas também podem as tornar mais vulneráveis a certos tipos de violências. Uma característica do TEA é o raciocínio linear e o vocabulário literal, que fazem com que pessoas autistas interpretem informações exatamente como lhes foram passadas, com mínima margem para abstração. Por isso, a interpretação de figuras de linguagem e sinais sutis pode não ser a abordagem mais eficaz para a educação sexual, que seria melhor trabalhada com recursos a instruções verbais, fotografias ou vídeos. É de suma importância que essas particularidades sejam levadas em consideração no desenvolvimento de programas especializados na educação sexual de pessoas do espectro – com especial atenção à incorporação de questões como regras sociais, comunicação e compreensão.

Tanto para incentivar uma relação positiva e instruída com o sexo e a sexualidade, que deve ser um direito de todos, quanto para evitar que pessoas no espectro sejam alvo de violência, políticas públicas devem ser pensadas para garantir a inclusão das pessoas autistas. Sobretudo, é necessário nos manter conscientes de que, ao tratar do TEA, estamos nos referindo a uma multiplicidade de experiências, que não podem ser reduzidas à estigmatização. Pessoas no espectro, pessoas LGBTQIA+, e as suas intersecções identitárias devem ter garantidos respeito e visibilidade à sua diversidade.

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