Opinião

Escala da cooperação oferecida pelo Brasil à África é irrisória se comparada à chinesa

Nossa dívida com relação à África é tão grande que pode ser aferida pela população desterritorializada nas ruas das cidades brasileiras

O presidente Lula durante encontro com o presidente de Cabo Verde, José Maria Neves. Foto: Ricardo Stuckert/PR
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“Para mim, a felicidade é o equilíbrio no fio da navalha” – Vinicius de Moraes

Os apelos do Papa Francisco por maior diálogo precisam ser ouvidos, urgentemente. Vale notar que a dificuldade em dialogar não ocorre apenas entre diferentes campos políticos, mas também internamente.

Quando ampliamos isso para a comunicação entre países, aumenta o desafio.

A passagem do presidente Lula pela África foi muito importante, mas não fugiu ao padrão da carência de troca dialógica.

O discurso presidencial em Cabo Verde centrou-se na dívida histórica do Brasil com a África e nas possibilidades de cooperação brasileira para o Continente, principalmente no que toca à agricultura.

Nesse sentido, parece ter utilizado como subtexto o bordão da diplomacia militar brasileira, dos anos 70, que, infelizmente, ainda quer orientar o Itamaraty: “Para cada problema africano, uma solução brasileira”.

São muitas as contradições dessa crença (pois disso se trata, não de verdade comprovada).

Em primeiro lugar, porque explicita – como a fala presidencial, que essa virtude teve – o atraso do discurso diplomático brasileiro proto-paulofreiriano, não conseguindo assimilar (passados mais de 50 anos) que todo relacionamento não é unilateral, ao contrário, sendo virtuosas as trocas que reconhecem e valorizam as possibilidades de crescimento mútuo.

Nesse sentido, faltou menção mais enfática à imensa e única contribuição africana à cultura brasileira, que nos deu todos os símbolos nacionais da gastronomia (a feijoada), à luta (a capoeira), ao ritmo (o samba).

Lembremos que sem samba não há festa nacional (o carnaval).

Além dessa lacuna, central, a fala presidencial, burocrática, preparada por assessoria desatenta, tampouco considerou como as trocas históricas, desiguais, violentas, criminosas, poderiam ser reconhecidas, reparadas e, assim, superadadas. Então – e só então – o Brasil se preparará para, finalmente, reconhecer que a África é um continente de riquíssimos recursos humanos, naturais e culturais e haurir do intercâmbio toda a riqueza dessas trocas.

Como nos preparemos para receber os conhecimentos africanos? Ou é retórica o reconhecimento do Continente que mais nos formou?

Recentemente, o presidente da África do Sul fez um belíssimo discurso em Paris, em conferência sobre financiamento internacional, no qual enfatizou que os países africanos não são mendigantes; buscam relações horizontais, entre iguais.

Ainda pior, a escala e a modalidade da cooperação oferecida pelo Brasil chega a ser irrisória se comparada, por exemplo, com a chinesa.

Unívoca e ínfima não parecem ser características a serem exaltadas, mesmo em uma visita-escala, após sete meses de governo, em que todas as capitais ocidentais foram já visitadas.

Discurso sem prática não agrega coerência ou autoridade, nem à diplomacia…

Nossa dívida com relação à África é tão grande que pode ser aferida pela população desterritorializada nas ruas das cidades brasileiras, invariavelmente negras; sejam aquelas que reduzimos à insanidade mental; seja toda a população de rua; sejam os novos imigrantes, senegaleses ou haitianos, com seus produtos chineses ou coreanos estendidos nas calçadas.

São expropriados de terras e culturas, por nós, diuturna e diariamente.

Pesquisa recente informa que os lares chefiados por mulheres negras estão três vezes mais expostos à insegurança alimentar, no Brasil.

Com Leonardo Boff, em Brasil – concluir a refundação ou prolongar a dependência (editora Vozes), cabe citar o Quixote: “No hay que aceptar las derrotas sin antes dar todas las batallas”.

Na mesma obra, Boff cita Santo Agostinho: “A esperança tem duas belas e queridas filhas: a indignação e a coragem; a indignação para recusar as coisas como estão aí; e a coragem, para mudá-las”.

Boff também faz um chamamento: “Não chegamos ainda à plenitude do humano. Temos de construí-lo historicamente na medida em que formos mais solidários, cooperativos e amigos da natureza e da Mãe Terra”.

O autor ainda nos recorda: “A lei suprema que preside a evolução aberta é: tudo tem a ver com tudo em todos os pontos e em todos os momentos; tudo está inter-relacionado, e nada existe fora dessa panrelacionalidade. Portanto, nada existe justaposto ou desarticulado. Senão, que as coisas todas são de tal forma interconectadas, que formam um incomensurável sistema. Este é um fio condutor básico de toda a reflexão ecológica que o Papa Francisco faz em sua Encíclica ‘Laudato Si’ – Sobre o cuidado da Casa Comum (2015, n. 86, 117 e 120)”.

Boff complementa: “Ela se encontra bem-expressa na física quântica de Niels Bohr e Werner Heisenberg, primeiros formuladores do novo paradigma de compreensão da realidade panrelacional. Para eles, a centralidade se encontra precisamente na constatação de que a lei suprema do universo, que permitiu que todos os seres chegassem até aqui, é a cooperação, a solidariedade cósmica e a sinergia. Afirma bela e poeticamente, o Papa Francisco em seu texto sobre ecologia integral: ‘O sol, a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal: o espetáculo das suas incontáveis diversidades e desigualdades significa que nenhuma criatura basta a si mesma; todas elas só existem na dependência das outras, para se complementarem mutuamente no serviço umas das outras […] tudo está interligado (‘Laudato Sí’ – Sobre o cuidado da Casa Comum, 2015, n. 86 é 117)”.

Sejamos, pois, dialógicos, entre nós, entre as nações e com todos os seres vivos, incluída a Mãe Terra, tão violentada por nós.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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