Yasmin Morais

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Escritora, jornalista em formação pela Universidade Federal da Bahia com mobilidade acadêmica na Université Toulouse 2 Jean Jaurès, integrante do Centro de Estudo e Pesquisa em Análise do Discurso e Mídia (CEPAD) da UFBA e fundadora do projeto Vulva Negra.

Opinião

Entre ursos e homens

O estupro é a memória física mais ancestral de que o corpo de uma mulher ainda não é considerado completamente humano

'Um urso ou um homem?': o debate é exemplo de como o medo e o trauma associados ao terrorismo sexual permeiam a vida das mulheres (Foto: iStock)
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Nas últimas semanas, as redes brasileiras foram tomadas por discussões em torno da seguinte pergunta: “em uma trilha na floresta, você preferiria encontrar um homem ou um urso?”. A questão, originalmente viralizada nas redes sociais norte-americanas, provocou debates acalorados entre mulheres – argumentando que prefeririam enfrentar as garras de um urso – e homens, sustentando que a morte por um animal selvagem seria certamente pior. Para sustentar seus temores, inúmeras mulheres citaram a possibilidade de estupro.

Um dos pontos subliminares dessa discussão é a disparidade da perspectiva de homens e mulheres sobre temas como a agressão sexual e a violência masculina. Na sociedade brasileira, moldada pela lógica patriarcal, as perspectivas masculinas sobre temas como violência, poder e sexualidade constituem o discurso dominante em torno da experiência. Isso significa que a vivência masculina é considerada a experiência humana universal – destituindo as mulheres do lugar de formadoras de discursos sobre si e seu próprio sofrimento.

Por isso, os homens muitas vezes não compreendem a verdadeira extensão do horror ao qual submetem mulheres, haja vista que seu sofrimento é frequentemente desconsiderado ou minimizado, tratado como algo menor e menos complexo.

Um dos aspectos mais profundos da dominação masculina se localiza na convenção cultural de que mulheres não são inteiramente humanas, e dessa maneira, não têm suas experiências de felicidade, dor ou descontentamento vistas da mesma forma que as experiências dos “universalmente humanos”. Com o lapidar da lógica patriarcal e o refinamento dos métodos de opressão, essas noções se estenderam para pessoas racializadas, imigrantes e outras minorias. No entanto, quando consideramos que as mulheres podem fazer parte de outros grupos minoritários, especialmente as mulheres negras, a negação de sua humanidade pode atingir níveis ainda mais profundos.

Desse modo, nos deparamos com contextos que vão desde médicos que administram menos anestesia em mulheres negras por considerá-las “fortes o suficiente”, até uma geração de homens que não compreende como o estupro e o abuso sexual são mais temidos por mulheres do que a própria morte. Esse fenômeno ocorre, em especial, porque o terrorismo sexual tem sido uma arma utilizada pelos homens contra as mulheres desde o início da dominação masculina, sendo um crime em que a maioria dos perpetradores são do sexo masculino e a maioria das vítimas são do sexo feminino.

Em geral, os homens desconhecem a profundidade e as sequelas psicológicas e sociais do constante terrorismo sexual. O estupro, afinal, é um pesadelo feito sob medida para as mulheres.
Homens heterossexuais não precisam considerar a possibilidade do estupro ou ponderar se seria mais doloroso ser estuprado por alguém ou morto por um animal feroz. Quando pensam no estupro, muitos recorrem às representações pornográficas, nas quais atrizes maquiadas sorriem e gemem enquanto dizem “não” aos avanços sexuais de atores.

Dadas profundas diferenças de percepção, homens tendem a não se dar conta de como o temor da violência sexual molda estruturalmente a personalidade, as possibilidades e até mesmo decisões cruciais que permeiam a vida de meninas e mulheres. Afinal, o estupro como estratégia de contenção e dominação sobre os corpos femininos encontra respaldo na cultura, na religião fundamentalista, no baixo índice de judicialização dos perpetradores e na opinião pública.

Em termos explícitos, inúmeras pessoas afirmam ser contra o estupro e a favor da vítima. No entanto, quando são adicionadas nuances, como o comprimento da roupa da vítima, o horário em que estava fora de casa, a idade ou a profissão, nota-se que ainda persiste a ideia de que há justificativas ocultas para o estupro.

A violência sexual é utilizada como um método  para que mulheres não se atrevam a ser dissidentes demais. Para que a lógica de dominação masculina perdure, mulheres precisam ser socializadas a partir do medo, do temor paralisante de serem subitamente destituídas da sua precária condição de indivíduos. Para os homens, essa aniquilação se dá através da morte física ou de seu caráter, do fim de suas vidas literais ou sociais. Para mulheres, através da agressão sexual.

Essa é uma das raízes do choque masculino ao perceber que o estupro é considerado mais avassalador pelas mulheres do que a própria morte. Em uma sociedade na qual somos condicionadas a não nos percebermos e a não sermos percebidas como inteiramente humanas, nossos atributos sexuais são a maneira pela qual somos definidas. Somos categorizadas como mães, filhas, esposas, objetos de uso sexual e entretenimento. Inconscientemente, há a dolorosa constatação de que somos reduzidas àquilo que é feito de nossas vaginas em um contexto no qual não nos é permitida uma completa subjetivação.

O estupro é a memória física mais ancestral de que o corpo de uma mulher ainda não é considerado completamente humano. É a lembrança mais antiga de séculos de escravidão, comercialização, troca por dotes, casamentos forçados, segregação por castas e utilidades, e da privação da plena condição humana. O estupro é o fantasma atrás da porta, aquele que nos impediu de brincar até mais tarde na rua, de usarmos roupas mais confortáveis, de viajarmos sozinhas, de sermos solteiras, de decidirmos quando iniciar nossas vidas sexuais, de escolhermos determinadas profissões, de confiarmos nas pessoas que deveriam nos proteger ou amar, de sermos vulneráveis, de amarmos novamente. O estupro é a aniquilação em vida, porque mesmo que nossos corpos não sejam violados, ele estará lá — assombrando nossas mentes, moldando nosso comportamento e nos devorando vivas.

Diante de tudo isso, ainda te parece absurda a ideia de que algumas mulheres poderiam preferir encontrar um urso?

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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