Justiça

E nós não estamos salvos

População branca ainda busca meios para seguir tratando população negra como ‘moeda de troca’.

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
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Em 1992, Derrick Bell, considerado por muitos o fundador da Teoria Crítica Racial, publicou um conto de ficção científica chamado “The Space Trader’s”. A história narra a chegada de líderes extraterrestres ao nosso planeta, que fazem uma incrível oferta aos Estados Unidos: se todos os afro-americanos fossem entregues aos alienígenas, em troca, eles deixariam o carregamento de suas naves (ou navios espaciais) para o país, o que significava ouro suficiente para quitar todos os débitos nacionais, uma fórmula mágica capaz de limpar os céus e as águas poluídas da América e uma fonte ilimitada de energia segura para repor as reservas escassas.

Feita a oferta em 1º de janeiro de 2000, foi fixado prazo de 15 dias para que os alienígenas retornassem e obtivessem uma resposta. A partir desse ponto, Bell passa a expor os acontecimentos de maneira cronológica, utilizando-se desse recurso como uma espécie de bomba-relógio para indicar a tensão que o conflito moral e ético causa na sociedade.

Durante os dias que antecederam ao retorno dos alienígenas, ocorrem inúmeras reuniões do presidente dos EUA com seus assessores. Nesse grupo, há um único homem negro, Gleason Golightly, descrito como um conservador professor de economia, que se insurge contra a proposta e tenta evitar que os afro-americanos sejam sacrificados em prol dos “enormes benefícios que o país teria”.

Depois de ter seus argumentos rechaçados pelo gabinete presidencial, Golightly se reúne com a comunidade negra e membros da coalizão contrária ao acordo, propondo que fosse espalhada a falsa ideia de que a vida com os alienígenas representaria um enorme ganho para os negros, muito maior do que para os brancos, e que os negros ficariam com a melhor parte do acordo. Esse argumento, segundo ele, faria com que os brancos rejeitassem a proposta, uma vez que jamais aceitariam que negros possuíssem qualquer coisa melhor, principalmente, uma melhor condição de vida.

Embora Golightly tivesse argumentos bastante razoáveis, como o de que havia se tornado um “especialista em manipular pessoas brancas para obter ganhos pessoais”, sua proposta foi rejeitada também por aqueles que eram contrários ao acordo, pois, como um integrante da assessoria do governo, havia trabalhado em diversas políticas públicas contrárias aos interesses da comunidade negra e, portanto, não possuía suficiente credibilidade para que suas considerações soassem verdadeiras.

Prof. Derrick Bell ((1930-2011),

Ao longo dos dias, um grupo de judeus também se organizou contra a proposta, por entender que, de forma transversa, a oferta alienígena representaria uma forma de holocausto do povo negro. Além disso, temiam que, aberto o precedente contra pessoas negras, caso houvesse necessidade de um novo sacrifício em prol da nação, pudessem eles, os judeus, estar em risco. Entretanto, todos os judeus contrários à oferta, foram colocados na lista do FBI e acabaram perseguidos e prejudicados, desestimulando a adesão de outros judeus e de outros grupos minoritários.

O governo resolveu então realizar um plebiscito para saber se a população seria a favor ou contra mudanças legislativas que autorizariam o envio de pessoas negras para o espaço, com a contrapartida que solucionaria diversos problemas da nação. Com 70% de votos, os norte-americanos decidem apoiar a transação comercial alienígena, anuindo com uma emenda constitucional capaz de tornar o negócio juridicamente possível.

Assim, no dia 16 de janeiro de 2000, feriado nacional em homenagem a Martin Luther King e data marcada pelos alienígenas como fim do prazo para resposta, homens, mulheres e crianças de pele negra foram conduzidos a força para naves espaciais semelhantes aos navios negreiros, que os retirariam para sempre de sua terra mãe, ao argumento de que deveriam ser sacrificados em prol do “bem comum”.

O conto ficcional de Bell teve enorme repercussão e recebeu inúmeras críticas por parte daqueles que entenderam ser um absurdo imaginar que, atualmente, pessoas brancas seriam capazes de sacrificar o povo negro, utilizando-o como moeda de troca ou para garantir seus próprios privilégios.

Derrick Bell morreu em 2011, muito antes de poder constatar que, ainda hoje, corpos negros não são reconhecidos como humanos a ponto de merecerem um lugar no trem que leva refugiados da Ucrânia para outros países. Nesse cenário de guerra, se não há vagas para todos ou, se há alguma prioridade na salvação, o critério é de humanidade seletiva. Quanto mais retinta a pele, menor a possibilidade de ser reconhecido como um ser humano.

No Brasil, não é diferente. O movimento antirracista “Imagine a dor, adivinhe a cor” vem lutando para combater o genocídio do povo negro, denunciando, entre outras coisas, que:

i) pessoas negras são 2,5 vezes mais vítimas de armas de fogo do que pessoas brancas;

ii) mais de 75% dos mortos pelas polícias brasileiras são negros;

iii) uma pessoa negra é morta por policial militar em serviço em São Paulo a cada 16 horas;

iv) 81% dos presos irregularmente por reconhecimento fotográfico são negros;

v) nos últimos dez anos, uma pessoa negra teve ao menos duas vezes mais risco de ser assassinada do que qualquer outra no Brasil. Essas informações revelam uma estratégia de eliminação do povo negro, que não está sendo enviado para o espaço, mas exterminado por uma necropolítica que opera bem diante dos nossos olhos.

O título desse breve artigo é uma livre tradução de uma das importantes obras de Derrick Bell, composta de histórias ficcionais sobre questões raciais também chamadas de “legal storytelling”. Diante dos últimos acontecimentos, não há como escapar da afirmação de Bell na capa de seu livro: E nós [negros/as] não estamos salvos!

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