João Pedro Stédile

Militante do MST e da Frente Brasil Popular

Opinião

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E depois da boiada?

A reforma agrária segue paralisada e a agricultura familiar carece de mais apoio

Os movimentos sociais estão atentos – Imagem: Joédson Alves/ABR
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Os últimos dois governos foram trágicos para a população e para um projeto de nação. Desmontou-se o aparato do Estado, privatizou-se o que se pode e o capital financeiro, os especuladores e as empresas transnacionais lucraram muito. No campo, o papel do governo foi “passar a boiada” nas leis e no direito das populações e se apropriar de tudo o que pudesse dos bens da natureza, sejam terras públicas, sejam florestas, minérios, água, biodiversidade e até invasões de áreas indígenas e quilombolas.

Foi essa a herança maldita que recebemos.

A vitória de Lula foi mais que eleitoral, foi uma vitória da democracia e da retomada do papel do Estado. Para tanto, recorreu-se a uma frente ampla das forças progressistas, populares e democráticas.

Depois da vitória, o desafio: como governar para que os recursos públicos sejam destinados a resolver as necessidades e os problemas da maioria da população?

Apesar de um cenário difícil, o presidente Lula, prioritariamente, comprometeu-se desde a campanha com o combate à desigualdade social, aos níveis de pobreza e à fome, além de se empenhar na geração de empregos e renda. Um belo e necessário plano de emergência. Mas tenho dúvidas se todo o ministério adotou e se os parlamentares do Centrão também querem.

Para cumprir esse plano mínimo, é necessário tomar medidas de urgência, de curto prazo e também apresentar propostas de médio prazo, no rumo de um novo projeto de país. Acertadamente, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, sinalizou a necessidade de redução da jornada e da limitação do trabalho nos feriados e domingos. Lamentamos a forma dura como foi atacado pelos interesses empresariais, sobretudo na mídia.

Nós, dos movimentos populares, estamos convencidos de que precisamos debater um novo projeto para o Brasil que incorpore um plano de reindustrialização e que priorize a produção de alimentos saudáveis que só a agricultura familiar consegue. Sem esses dois vetores, não atenderemos as necessidades de nossa população.

Na questão ambiental, tivemos avanços significativos. As ações concretas contra o garimpo ilegal, o contrabando de madeira e as queimadas reduziram o desmatamento na Amazônia em 22%. Algo elogiável. O desmatamento do Cerrado, do Pantanal e da Caatinga continua, porém, a crescer. Tudo em nome das exportações de commodities.

Defendemos uma política de desmatamento zero em todos os biomas. Não há necessidade de derrubar mais árvores. Não só. Precisamos implementar um plano nacional de reflorestamento, a ser executado pelos agricultores familiares. Tarefa que o agronegócio nunca fará. Segundo o cientista Carlos Nobre, precisaríamos reflorestar 50 milhões de hectares, para não chegar ao ponto de “não retorno”.

A reforma agrária está paralisada. O governo não conseguiu nem começar a resolver o problema das 80 mil famílias acampadas. A meta a ser alcançada pelo Incra neste ano foi a menor desde o fim da ditadura, em 1984, que coincide com o nascimento do MST. No Brasil, temos milhões de hectares de grandes fazendas improdutivas, as quais, de acordo com a Constituição, deveriam ser desapropriadas e destinadas à reforma agrária. Há milhões de hectares nas carteiras dos bancos, recolhidos em dívidas não pagas, ou que poderiam ser recolhidas.

Cerca de 80 mil famílias continuam acampadas à espera de um pedaço de terra

É possível reduzir o tamanho dos lotes a ser distribuídos às famílias, e fazer os assentamentos mais próximos das cidades, para que a produção chegue mais rapidamente – e mais barata – à população. O programa de reforma agrária pode ser o motor de um novo desenvolvimento no campo. Um desenvolvimento que priorize a produção de alimentos, a preservação ambiental e a melhora das condições de vida das populações rurais. Isso exige também políticas de incentivo e apoio à produção de alimentos saudáveis, à agroecologia, acesso à educação em todos os níveis, moradia digna e um programa de instalação de agroindústrias e cooperativas nas áreas reformadas.

Na agricultura familiar, o governo também ficou em dívida. Existem 5 milhões de unidades produtivas. Houve ampliação dos recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. Um bom programa, mas insuficiente, que alcança apenas 20% das famílias, sobretudo aquelas já integradas ao mercado ou subordinadas à agroindústria. A maior parte dos recursos vai para produtores de soja e para os agricultores da Região Sul, enquanto a maioria dos camponeses vive no Nordeste.

Defendemos o aumento da produtividade do trabalho e da terra na geração de alimentos pela agricultura familiar. Para isso, o governo precisa organizar um plano nacional de mecanização. Basta lembrar que, nacionalmente, 18% das unidades são mecanizadas. No Nordeste, apenas 3%. Também precisamos de um plano nacional de instalação de fábricas de fertilizantes orgânicos e defensivos biológicos.

O governo recuperou o Programa de Aquisição de Alimentos, poderoso instrumento para estimular a produção de alimentos. Mas destinou apenas 750 milhões de reais, dos quais um limite de 15 mil ­reais será acessado por apenas 50 mil famílias de um potencial de 5 milhões. Sem um PAA com os recursos necessários, não conseguiremos aumentar a produção de alimentos para o mercado interno nem combater a fome e o desemprego no campo. Não se trata de falta de dinheiro. Basta lembrar que, em 2022, o gasto com a dívida pública foi de mais de 500 bilhões de ­reais. Ou os 12 bilhões de subsídios que o Tesouro vai pagar nesta safra pela diferença da taxa de juros no crédito rural, que beneficia, sobretudo, o agronegócio.

Também recuperamos o Pronera, programa de apoio a jovens camponeses a recuperar o ensino médio e também terem acesso à universidade, no sistema de alternância. Mas o governo levou dez meses para nomear a coordenadora e agora não tem recursos. Uma vergonha. Devemos dar a oportunidade a milhares de jovens camponeses de entrar na universidade sem sair da sua comunidade.

É compreensível que o primeiro ano do governo tenha sido para arrumar a casa. Restam os três próximos. É urgente acelerar a ação governamental, com mais unidade e eficiência, necessárias para enfrentar e resolver os problemas da pobreza e do desenvolvimento social e econômico. Quando não se resolvem os problemas sociais, eles só se agravam. E voltam com mais força.

Ou se vingam nas urnas. •

Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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