Aldo Fornazieri

Doutor em Ciência Política pela USP. Foi Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), onde é professor. Autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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Dubiedade vergonhosa

O Brasil não pode querer manter um pé na canoa dos direitos humanos e outro pé na embarcação da ditadura nicaraguense

O presidente Daniel Ortega e sua esposa e vice-presidente Rosario Murillo. Foto: Cesar PEREZ / Nicaraguan Presidency / AFP
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A Nicarágua, sob Daniel Ortega, tem hoje a mais brutal ditadura da América Latina e uma das mais cruéis do mundo. Ao longo dos anos, para manter-se no poder, Ortega transformou-se num impiedoso tirano, que usa a repressão e a violência sanguinária de forma sistemática. Em 2018, reprimiu violentamente as manifestações contra seu governo, causando a morte de mais de 300 indivíduos.

No início deste ano, de acordo com relatório da Agência das Nações Unidas para Refugiados, conhecida pela sigla ­Acnur, são mais de 260 mil refugiados e exilados políticos, fora os emigrados. Estudantes, religiosos, ativistas, feministas, organizações da sociedade civil, intelectuais e jornalistas sãos os grupos mais reprimidos. Universidades e residências são invadidas sem justificativas. Dos sobreviventes da antiga cúpula do Movimento Sandinista que fez a revolução, todos vivem no exílio. Ortega foi se tornando um ditador igualável a Anastasio Somoza.

Ortega inova na violação dos direitos humanos. Em fevereiro deportou 222 presos políticos, mas ainda persistem centenas. Entre eles Cristina Chamorro, filha da ex-presidente Violeta Chamorro. Além de perseguir, matar e suspender direitos políticos, a ditadura passou a cassar a cidadania nicaraguense de perseguidos e ativistas de direitos humanos. Em fevereiro, o bispo Rolando ­Álvarez, símbolo da resistência, foi sentenciado sem julgamento a 26 anos de prisão e à perda da cidadania.

Ortega professa os piores valores, comuns a todos os ditadores de extrema-direita. É machista e homofóbico. Ele próprio é acusado de estupro e pedofilia: em 2001, Zoilamérica Narváez ­Murillo, enteada de Daniel Ortega e filha da comparsa de crimes do ditador, ­Rosário ­Murrillo, acusou o atual líder da Nicarágua de abusá-la sexualmente, estuprá-la e violentá-la durante 20 anos. Segundo a denunciante, ela foi abusada desde que tinha 9 anos de idade.

Um relatório da Acnur, divulgado em 3 de março, atesta que mais de 300 nicaraguenses foram privados de sua cidadania em apenas um mês. Afirma ainda que “a situação dos direitos humanos na Nicarágua continuou a piorar nos primeiros meses de 2023”. As violações são sistemáticas, abrangentes e emanam da cúpula do governo. O Conselho de Direitos Humanos da ONU avalia que a repressão da ditadura configura crime contra a humanidade.

Um dos membros da equipe da ONU, o pesquisador Jan-Michael Simon, comparou a conduta da ditadura ao nazismo. “O uso do sistema de justiça contra opositores políticos da maneira como é feito na Nicarágua é exatamente o que o regime nazista fez.” Era também o que Bolsonaro queria fazer aqui ao investir contra o STF para dominá-lo. É o que fazem as ditaduras de extrema-direita pelo mundo afora.

Em face da gravidade do relatório, 55 países, entre eles o Chile e a Colômbia, assinaram um manifesto condenando a violação dos direitos humanos na Nicarágua. Inexplicavelmente, o Brasil omitiu-se. Com repercussão negativa, o Itamaraty criou uma desculpa esfarrapada para justificar a omissão. Agora, o governo brasileiro afirma que vai acompanhar a situação e que se dispõe a receber refugiados nicaraguenses.

O Itamaraty e o Ministério dos Direitos Humanos precisam explicar ao povo brasileiro qual é a sua concepção de direitos humanos. Parece que é uma posição seletiva, mas inaceitável. Não há qualquer justificativa política, pragmática, ideológica ou geopolítica que justifique a não condenação da violação aos direitos humanos pela ditadura de Ortega. O Brasil não pode querer manter um pé na canoa dos direitos humanos e outro pé na canoa da ditadura nicaraguense. É vergonhoso.

Se o Brasil quer exercer uma posição de liderança na América Latina, precisa assumir princípios inegociáveis: defesa da democracia, da liberdade, dos direitos humanos e da justiça social. Isto implica condenar as violações e os regimes ditatoriais.

Se Bolsonaro tivesse viabilizado uma ditadura, os líderes do atual governo estariam percorrendo o mundo para condená-la e condenar a violação dos direitos humanos. Diante das próprias violações do governo Bolsonaro, políticos de esquerda, corretamente, denunciaram essas violações em organismos internacionais, encaminharam recursos e buscaram apoio. Não se pode ser democrata e de esquerda e apoiar ou se omitir diante das graves violações da ditadura de ­Daniel Ortega na Nicarágua. •

Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dubiedade vergonhosa’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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