Opinião
Desonra golpista
Os oficiais arruaceiros a serviço de Bolsonaro não são as instituições militares. Ao contrário, são motivo de constrangimento para elas
Os regimes autoritários do nosso tempo não são mais as ditaduras militares que caracterizaram a segunda metade do século XX. Esses regimes agregam duas características novas: o controle parcial ou total das Supremas Cortes de Justiça e dos sistemas eleitorais. Esse último visa também estabelecer o controle das Casas Legislativas, dos Parlamentos.
O modelo dessas novas formas de ditadura foi estabelecido por Vladimir Putin na Rússia e vem sendo replicado por Nicolás Maduro na Venezuela, por Daniel Ortega na Nicarágua, Naiyb Bukele em El Salvador e por alguns países africanos. Donald Trump tentou instituir esse modelo nos EUA através do fracassado golpe da invasão do Capitólio. Bolsonaro ainda tenta viabilizá-lo no Brasil. Se perder as eleições, tentará um golpe de força com a farsa da fraude eleitoral. Se vencer, o viabilizará adotando, antes de tudo, um controle do Supremo Tribunal Federal.
Com esse intento golpista, Bolsonaro promove ataques diários ao STF, ao TSE e às urnas eletrônicas. O mesmo sistema pelo qual ele se elegeu deputado federal por cinco vezes e também presidente da República. O mesmo sistema pelo qual seus três filhos se elegeram a vários cargos legislativos. A propalada vulnerabilidade das urnas é uma inverdade evidente, com o objetivo de desacreditar as eleições com mentiras para justificar o golpe.
Nos últimos tempos, alguns militares se envolveram nessa empreitada golpista. Começaram a participar das arruaças recorrentes promovidas por Bolsonaro. A Polícia Federal indicou a participação dos generais da reserva Augusto Heleno e Luís Eduardo Ramos. O general Braga Neto também se envolveu em episódios golpistas. E, agora, vê-se o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, cumprindo o papel de um subserviente do candidato a ditador.
Esses militares desonram as Forças Armadas e arruínam a imagem positiva que elas construíram no período da redemocratização. Prestam um desserviço ao Brasil, à Constituição, à República e ao Estado Democrático de Direito. Escavam a indisciplina militar, a mesma indisciplina que ocasionou a expulsão de Bolsonaro do Exército. O pronunciamento político dos militares sempre abriu as portas para a anarquia, para os desmandos, para a violência e o arbítrio e para a corrupção.
A maioria dos militares e as Forças Armadas enquanto instituição não participam das arruaças delinquenciais do presidente. Seguem a Constituição e o bom exemplo de chefes profissionais, disciplinados e honrados, como o era o general Edson Pujol, comandante do Exército que se recusou a participar da arruaça e acabou substituído. Os que acompanham Bolsonaro na sua aventura golpista seguem mais o soldo do que a Constituição, mais a duplicação de ganhos do que a disciplina, mais a ambição pessoal do que a honra militar.
SE FOR DERROTADO, O EX-CAPITÃO TENTARÁ UM GOLPE SEM O APOIO DAS FORÇAS ARMADAS. SOMENTE GENERAIS CORROMPIDOS VÃO SE UNIR AOS MILICIANOS
Ao se deixarem arrastar para a aventura, ao se tornarem serviçais dos privilégios e dos ganhos acima do teto constitucional, esses generais se tornaram soldados da ambição e da corrupção. Perderam a dignidade própria, são inimigos da verdade, da probidade e da responsabilidade. Não cumprem a lei e se tornaram inimigos da Constituição. Os inimigos da Constituição são inimigos do Brasil e do povo.
Ao encaminharem demandas absurdas ao TSE, desprovidas de conhecimento técnico, ignorantes do funcionamento das urnas e do processo eleitoral, esses generais envergonharam as Forças Armadas, lançando suspeições sobre a qualidade da formação dos oficiais superiores. Mas essa ignorância precisa ser debitada à consciência pervertida e corrupta desses militares, e não às instituições das Forças Armadas.
Os generais do governo não são as Forças Armadas. Nem o ministro da Defesa o é. Ele é um delegado de Bolsonaro. Nesse sentido, a abordagem que a imprensa e os democratas fazem do problema, atribuindo as arruaças desses generais às instituições militares, é equivocada.
O TSE cometeu um erro ao convidar os militares para participar da Comissão de Transparência Eleitoral. Eleições são um assunto absolutamente civil. O convite foi feito de boa-fé. Mas Bolsonaro e os generais oportunistas espreitaram na brecha a oportunidade para criar o tumulto e a desordem.
Os representantes das instituições maiores da República precisam acabar com uma prática danosa à República: o compadrio. Brasília não é a sede da República, mas a sede dos compadres que a degradam. Cada chefe de poder precisa cumprir o seu dever constitucional. Não há razões para o presidente do STF se reunir com o presidente da Câmara, do Senado ou com Bolsonaro. Não há razão para chefes dos poderes civis se reunirem com o ministro da Defesa. Ele é um subordinado do presidente.
Os ministros do STF também precisam cumprir o seu dever constitucional e ponto. O mesmo deve ser o procedimento dos chefes dos outros poderes. Essas reuniões de compadrio degradam o dever constitucional e republicano e geram anarquia institucional.
Se for derrotado nas urnas, Bolsonaro tentará o golpe sem o apoio das Forças Armadas. Terá milicianos, aventureiros, fascistas e generais corrompidos ao seu lado. A sociedade civil, os partidos políticos e as instituições republicanas precisam se preparar para confrontar e derrotar essa aventura. Os órgãos de segurança como a Polícia Federal, o Ministério Público e o próprio Poder Judiciário precisam agir e punir os golpistas.
Um golpe deve ser enfrentado pela sociedade organizada e pelos organismos de segurança. Os golpistas devem ser presos, julgados e condenados pela Justiça, sem clemência e sem concessões. •
*Cientista político, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e colunista de CartaCapital.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1208 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Desonra golpista”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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