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Debaixo do tapete

O afastamento do juiz Eduardo Appio da 13ª Vara de Curitiba visa eliminar o contraponto aos desmandos da Lava Jato

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O juiz federal Eduardo Appio. Foto: Divulgação/JF-PR
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O juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, berço da Lava Jato, foi afastado cautelarmente pela Corte Especial Administrativa da Corregedoria Regional da Justiça Federal da 4ª Região no âmbito de determinada investigação disciplinar. A garantia constitucional de inamovibilidade foi subtraída por meio de uma sanção extremamente drástica e sem oportunidades do exercício dos elementares direitos constitucionais à ampla defesa e contraditório.

O expediente disciplinar possui finalidades distintas daquelas que devem conduzir o exercício de um dever-poder disciplinar. A atuação jurisdicional do magistrado Eduardo Appio ocorria como contraponto crítico ao lavajatismo. As indisposições locais nasceram aí. O que podemos chamar de caso Appio, em conjunto com uma maior transparência sobre os produtos da Operação Spoofing nos últimos dias, levantou fortes indícios de práticas ilegais e criminosas da Lava Jato nos últimos anos.

Preocupações quanto aos desdobramentos investigatórios levaram ao afastamento cautelar do magistrado. Destaque-se, inclusive, que a Corte Especial Administrativa da Corregedoria Regional da Justiça Federal da 4ª Região descumpriu uma decisão liminar referendada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal que, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.638, suspendeu a eficácia do § 1º do artigo 15 da Resolução de 135/2011, do Conselho Nacional de Justiça, para vedar que o afastamento cautelar de magistrados com fundamento em mera investigação disciplinar.

O sucessor na 13ª Vara Federal deveria ser aquele eleito para manter intactas as decisões dos últimos anos. O portal GGN noticiou que “Marcelo Malucelli teria articulado com os procuradores da Lava Jato a sucessão de Sergio Moro na 13ª Vara de Curitiba”. Ademais, o hoje senador Moro reconheceu explicitamente que atuou diretamente para obter o afastamento do magistrado: “Recolhemos o material e entregamos ao tribunal”. Apenas o receio provocado pelo desnudamento daquilo que está debaixo do tapete justifica tamanha interferência.

Não por acaso, tomamos conhecimento, de veiculações que colocam em xeque os bilhões de reais sob responsabilidade da 13ª Vara Federal de Curitiba obtidos no âmbito da celebração de acordos de leniência e de colaboração premiada. A destinação de valores deve ser objeto de elementar processo de prestação de contas, o que pode ser promovido pela correição extraordinária em curso.

Por todas essas razões, na condição de um dos advogados de Appio, formulamos um pedido de avocação ao Conselho Nacional de Justiça, medida jurídica que visa, em razão da quebra de imparcialidade, deslocar a apuração da alegada infração disciplinar para a referida instância superior de controle do Judiciário. Appio foi afastado do exercício da função jurisdicional não por ter, em tese, praticado qualquer infração disciplinar, mas por contrariar a sucessão na 13ª Vara Federal. O magistrado não foi, de longe, aquele desejado para manter escondidos os abusos da Lava Jato. Era preciso eliminar o contraponto, o que ocorreu pelo exercício de um dever-poder disciplinar enviesado em sua finalidade. O desvio de finalidade, nas lições básicas de Direito ­Administrativo, macula a expedição do ato administrativo de afastamento cautelar.

É preciso restaurar o direito do magistrado ao exercício da prestação jurisdicional. De todo modo, para além de qualquer direito subjetivo individualmente considerado, é fundamental que os escândalos do lavajatismo continuem a ser revelados e investigados pelas instâncias estatais de controle e sociais. A Lava Jato orquestrou, em detrimento da própria democracia e da estabilidade das nossas instituições, um projeto de domínio político e de ascensão messiânica de agentes públicos. Ameaçados, a reação veio por meio de métodos sabidamente lavajatistas.

A Lava Jato desenhou-se por inéditas e desafiadoras formas e discursos, o que nos leva a alertar que a história humana não ocorre em fases estanques, como às vezes a descrição didática em períodos transparece. O olhar para o futuro pressupõe o reconhecimento dos nossos fracassos, a insuficiência dos nossos ma­nuais clássicos em responder aos desafios contemporâneos e a falibilidade do nosso sistema de justiça.

Appio deve, imediatamente, reassumir sua condição de juiz natural da 13ª Vara Federal de Curitiba. Trata-se de honrar um compromisso com aquilo que há de mais elementar numa democracia: acerto de contas com compromissos constitucionais irrenunciáveis. •

Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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