Gustavo Freire Barbosa

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Advogado, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coautor de “Por que ler Marx hoje? Reflexões sobre trabalho e revolução”.

Opinião

“Dama do tráfico”: o mais novo espantalho da direita

A alcunha dada pelo jornal O Estado de S. Paulo era tudo que a extrema-direita precisava para viralizar o conteúdo e dar novos motivos para o bolsonarismo eleger seus alvos

Luciane Barbosa Farias - Reprodução/Instagram
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Nas últimas semanas a “dama do tráfico” tomou os noticiários: Luciane Barbosa, esposa de um líder criminoso no Amazonas e responsável por uma ONG voltada a direitos de presidiários, virou assunto após conseguir encontros com dois secretários do Ministério da Justiça e uma coordenadora do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. A peregrinação por Brasília – onde estava para participar de um evento de combate à tortura realizado pelo Ministério dos Direitos Humanos – envolveu também conversas com parlamentares.

A preparação da crise começou com a alcunha dada a Luciane pelo jornal O Estado de S. Paulo. “Dama do tráfico” parecer ser um termo inédito mesmo nas páginas policiais amazonenses. Para o Brasil, porém, Luciane foi apresentada com o melhor rótulo possível para que o caso ganhasse amplitude.

A recente divulgação de que sua ida a Brasília foi financiada por recursos do Ministério de Direitos Humanos fez com que Sílvio Almeida, titular da pasta, passasse também a ser alvo de parlamentares bolsonaristas, antes concentrados no Ministro da Justiça, Flávio Dino. Contra ambos foram apresentados pedidos de impeachment.

Como essência é diferente de aparência, o declarado propósito dos bolsonaristas – defesa da ordem, combate ao crime organizado, etc – anda de lado com o obscurantismo e com o fetiche que têm para com práticas criminosas: sua “defesa da ordem” é a defesa oculta da limpeza étnica e social, do encarceramento em massa, das execuções sumárias e da própria tortura.

À primeira vista, o episódio surge como oportunidade de relacionar o governo Lula ao crime organizado, difamar os direitos humanos e consolidar uma posição de endurecimento no tratamento a criminosos. Nesse contexto, receber e custear a visita de uma pessoa ligada ao crime seria o recibo da leniência do governo com as facções criminosas que o bolsonarismo diz combater.

Mas são os detalhes e a memória recente que mostram que não é bem assim.

Em 2019, o ex-vice-presidente Hamilton Mourão, figura de proa do bolsonarismo, recebeu no Palácio do Planalto a visita do megatraficante Milton Constantino da Silva, preso meses depois na operação Enterprise, realizada contra o tráfico internacional de drogas. Em sua ficha, uma condenação a 11 anos de prisão por formação de quadrilha, falsificação de documento público e receptação. Ex-major da PM, Constantino foi ao Planalto para conversar sobre o “fortalecimento do patriotismo” no país. Apesar do apelido de “Pablo Escobar Brasileiro” e dos sorrisos recíprocos registrados em foto, Mourão não foi constrangido a dar cabimento sobre o encontro.

O episódio, obviamente, foge à memória dos bolsonaristas que hoje rugem contra Dino e Almeida – assim como foge a relação umbilical do clã Bolsonaro com as milícias da zona oeste do Rio de Janeiro, com direito a rachadinhas e emprego de familiares de milicianos em gabinete parlamentar, para não falar das recentes delações do ex-ajudante de ordens Mauro Cid. O transporte de quase 40 kg de cocaína em avião da FAB é outro cabeludo episódio que a fração hegemônica da desmemoriada direita brasileira parece ignorar.

No caso de Luciane, ela integra, como representante da sociedade civil, o Comitê de Prevenção e Combate à Tortura no Amazonas (CEPCT-AM). O custeio da passagem ocorreu não para ela, mas para que membros de colegiados dessa natureza, do Brasil todo, participassem de um evento que tinha pertinência com sua área. Não cabe ao governo federal fazer diligências acerca do passado e procedência dos titulares e suplentes de conselhos do tipo. Tampouco cabe escolher quem ocupará ou não suas cadeiras e quem irá a eventos do tipo.

A gritaria contra os ministros é, na verdade, é gritaria a favor do tratamento degradante em nossas unidades penitenciárias e o clamor em favor da tortura. O STF e o CNJ vêm sucessivamente reconhecendo nosso sistema prisional como masmorras, com corriqueiras práticas de suplícios físicos. É um problema que não pode ser ignorado e muito menos exaltado como virtude.

Mas não convém defender a tortura, um crime inafiançável, na tribuna do parlamento. Fazer isso seria forçar a barra da imunidade parlamentar, além de entrar na linha dos conselhos de ética e decoro parlamentar do Senado e da Câmara. Por isso a polêmica da “dama do crime”, natural como suco em pó, opera como máscara do indefensável, dando gás à direita raivosa anti-direitos humanos e servindo como tentativa de constranger um governo que se apoia em ideias iluministas e não-medievais.

O espantalho perfeito para quem tem a milícia como crime organizado de estimação e não tem qualquer preocupação em debater segurança pública como adulto.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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