Economia

Da lama ao caos

O caso de Brumadinho ensina: é urgente colocar na mesa o debate sobre o nosso modelo de desenvolvimento

Bombeira em Brumadinho (Foto: Governo em MG)
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Após pouco mais de três anos do rompimento da barragem em Mariana que deixou 19 mortos e matou o Rio Doce, o Brasil viveu mais uma semana de horror e luto em Brumadinho, com um número de mortos que pode chegar a 350.

Primeiramente, é preciso chamar as coisas pelo nome: o rompimento das barragens, tanto em Mariana quanto em Brumadinho, não foi um “acidente natural”, como um furacão ou um tsunami.

Trata-se de um crime ambiental, em que a Vale foi responsável direta, por dolo ou descaso.

A forma como se organiza o Estado brasileiro também tem sua parcela de responsabilidade. Há décadas, os órgãos de fiscalização estão sucateados e há leniência e uma escancarada porta giratória entre setor público e privado.

Os responsáveis pelo controle da mineração frequentemente são ou foram ligados ao setor e particularmente à Vale. Além do poderoso lobby da mineração no Congresso Nacional, que blinda empresas bilionárias da regulação e intervenção pública.

Para se ter uma ideia, até hoje nenhuma família atingida em 2015 foi reassentada em Mariana e a maioria das vítimas ainda espera por indenização.

Das 68 multas ambientais, apenas uma está sendo paga e em 59 parcelas. Por outro lado, mesmo após a tragédia, a Vale recuperou seu valor de mercado – a ponto de artigo do The Intercept apontar a funcionalidade econômica das tragédias – e pagou mais de 7 bilhões de reais em lucros e dividendos a acionistas em 2018, aumentando ainda a remuneração a seus diretores.

Em seu site, a mineradora diz que sua missão é “transformar recursos naturais em prosperidade e desenvolvimento sustentável”. Seus valores são “a vida em primeiro lugar” e “cuidar do nosso planeta”.

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Fora do marketing institucional, o cinismo dá lugar à realidade. Centenas de mortos e parte significativa da bacia hidrográfica da região foram soterrados por sua lama. E o lucro dos acionistas veio antes da reparação a milhares de famílias das regiões afetadas.

Com dois episódios em um período tão curto, não dá sequer para falar em azar ou em surpresa.  Na última década, há pesquisas internacionais relacionando os rompimentos de barragens de rejeitos com os ciclos de preços dos minérios.

A urgência para iniciar operações em períodos de alta leva as empresas de mineração pelo mundo a escolher tecnologias e locais inapropriados para a instalação dos projetos, a intensificar a produção e reduzir seus custos quando os preços caem, sobretudo em manutenção e monitoramento.

A técnica de barragens à montante, aplicada em Mariana e Brumadinho, é a mais barata e a menos segura.

Em Mariana, a obra da barragem que se rompeu se iniciou de forma irregular em 2007. Em Brumadinho, foi em 2008. Justamente no período em que a tonelada do minério de ferro chegava ao maior valor do século.

Esse tipo de análise nos leva a pensar as tragédias não como excepcionalidades, mas como parte do “pacote” da mineração predatória feita por grandes multinacionais.

Daí a declaração do pesquisador Bruno Milanez de que um novo rompimento de barragem era “questão de tempo”, apontando que de 2002 para cá tivemos um a cada dois anos.

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Não há como não relacioná-los com a privatização da empresa. Os grandes crimes da Vale foram pós-privatização, com o predomínio da lógica do lucro dos acionistas acima de tudo, inclusive da vida.

A responsabilidade da Vale não pode nos levar a ignorar a conivência do poder público, por meio da flexibilização das licenças ambientais.

No caso de Minas Gerais começou com Aécio Neves e seguiu com Antonio Anastasia e Fernando Pimentel. Este último aprovou a nova licença para Brumadinho no apagar das luzes de seu governo, em dezembro de 2018.

Aquilo que Bolsonaro estupidamente anunciava como intenção – a facilitação das licenças, o fim da “indústria da multa do Ibama” – já vinha sendo operado há tempos por agentes públicos de distintos partidos em nome do “desenvolvimento econômico”.

Aqui chegamos a um ponto fundamental. Nada aprenderemos com Mariana e Brumadinho se essas tragédias criminosas não nos levarem a questionar os efeitos do atual modelo de desenvolvimento sobre o planeta e sobre nossas vidas.

A economia brasileira é profundamente dependente da exportação de minérios, grãos, água e energia. Baseamos nosso desenvolvimento na exportação de commodities, o que nas últimas três décadas levou a uma reprimarização da economia, liderada pelo agronegócio e o setor da mineração.

Em termos da divisão internacional do trabalho, o Brasil foi convertido numa fazenda da China.

Para além da subordinação econômica, porque deixa de se agregar valor aqui ao vender produtos primários – revivendo o modelo colonial – o resultado é a predação irracional do meio ambiente e a violência contra populações inteiras.

Indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas e outros povos tradicionais são os principais atingidos por esses projetos e os maiores afetados pela destruição da natureza e de seus territórios.

Assistimos isso com a mineração predatória da Vale. Esses megaprojetos econômicos têm o lucro em primeiro lugar e aprofundam as desigualdades sociais e a destruição ambiental. É esta lógica que precisa ser superada. A lição que precisamos tirar de Brumadinho é colocar na mesa o debate sobre o modelo de desenvolvimento no Brasil.

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