Justiça

Crise, pandemia e a esquina da revolução

É certo que essa crise buscará se resolver em seus próprios termos capitalistas, mas ainda assim estamos diante de oportunidade histórica

Drone com alto-falante é usado para evitar aglomerações na zona sul do Rio de Janeiro (Tomaz Silva/Agência Brasil)
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A demissão de Mandetta do Ministério da Saúde foi o ponto alto daquilo que se tornou a polêmica favorita do bolsonarismo em tempos de pandemia: o dilema que coloca a vida das pessoas de um lado e a economia do outro, ou a escolha de Sofia entre morrer infectado ou de fome.

Obviamente, este dilema é falso. E esta falsidade aparentemente já se encontra no radar dos capitalistas e da sua matilha de economistas liberais e intelectuais orgânicos preocupados em enxertar argila nos pés de barro do capitalismo. Nesse sentido, o Brasil parece despontar como uma das poucas exceções, já que aqui, além dos EUA, estão saindo às ruas para pedir o fim do isolamento social sem atentar para o fato de que a sede predatória por acumular pode gerar consequências não muito agradáveis para seus próprios negócios.

Quem percebeu isso foi Bismarck há 140 anos. Pragmático, o chanceler buscou afastar a influência dos movimentos socialistas na Alemanha do final do século XIX ao criar um sistema de seguridade social que ajudou a manter a classe trabalhadora na órbita do que mais tarde receberia o nome de social-democracia. Consagrado em 1919 com a República de Weimar, tal modelo se edificou sobre os cadáveres dos comunistas liderados por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, brutalmente assassinados pela aliança sórdida entre os social-democratas e os Freikorps, grupos paramilitares anticomunistas que serviram de inspiração ao nazismo.

Esta obviedade foi também percebida pelo economista Richard Baldwin. Em entrevista à BBC, afirmou que “se você não entrar em quarentena por causa da pandemia, ela causa mais problemas e mais danos econômicos”. É evidente que não há distinção entre salvar vidas e salvar a economia. Baldwin, portanto, não inventa a roda. Rememorando Bismarck, invoca a rede de proteção social e o keynesianismo que, há quase cem anos, amorteceu os efeitos da Grande Depressão: “as principais medidas são proteger as famílias mais vulneráveis, proteger as empresas para que empregos estejam disponíveis quando esse período passar e proteger os bancos para garantir que eles não irão à falência”.

No Brasil, este paraíso para os super-ricos, deixa-se de arrecadar mais de R$ 300 bilhões anualmente por causa da sonegação. Paga-se também um montante acima do trilhão a título de juros e amortização da dívida, sem falar no nosso sistema tributário regressivo, que protege a renda e o patrimônio de gente que tem mais de seis zeros na conta bancária. ]

Como defender que não há dinheiro para o nosso Estado de bem-estar social?

A receita para salvar o capitalismo sempre esteve na mesa. Relutantes no início, os EUA de Trump e o Reino Unido de Boris Johnson já se curvaram ao tão difamado Keynes, persona non grata nos interstícios temporais situados entre as crises cíclicas da economia de mercado. Para superá-la, no entanto, a esquerda anticapitalista deve se separar do joio dos social-democratas e passar a enxergar um futuro não dentro, mas fora das formas do capital e das democracias liberais.

Foto: PHILIPPE LOPEZ/AFP

É essa a reflexão que propõe Alysson Mascaro no livro “Crise e Pandemia”, recém lançado pela Boitempo Editorial. De modo geral, as crises não chegam a afetar a substância dos mecanismos econômicos de apropriação da riqueza coletivamente produzida e da propriedade privada. Seus efeitos conseguem ser absorvidos por meio de novas matrizes de acumulação, mantida com alguns retoques uma vez passada a tempestade (no caso da crise de 2008, sequer chegou a ser necessária a criação de novas bases para a acumulação, tendo ocorrido o aprofundamento dos mesmos padrões neoliberais).

A partir disso, Mascaro sugere a ampliação dos nossos horizontes para além dos limites impostos pela gaiola do capitalismo:

“emitindo-se mais dinheiro e papéis, servindo-se do socorro dos Estados aos bancos, rebaixando, flexibilizando ou mesmo suspendendo proteções ao trabalho, nacionalizando-se, estatizando-se ou intervindo em empresas e na atividade econômica, pela forma política estatal socorre-se parcialmente a sociabilidade da forma mercadoria. As reações políticas e jurídicas às crises não salvam do capital; salvam o capital”.

Não por menos, Marx, em “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”, conclui que o que transforma os democratas em representantes do pequeno-burguês é o fato de não conseguirem transpor em suas cabeças os limites que este não consegue ultrapassar na vida real, sendo esta, em termos gerais, “a relação entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe que representam”.

O surgimento de novas fórmulas de acumulação resultantes da auto-salvação do capitalismo não é inevitável. É certo que a crise do capitalismo contemporâneo, agravada pela pandemia, buscará ser resolvida mediante seus próprios termos, como bem assinala Mascaro. Mas se nem todo ponto se encontra na curva, precisamos ter em mente que o teto das reações à crise deve necessariamente estar acima de vacinas cujos anticorpos são produzidos pelo próprio sistema exatamente em função da finalidade de lhe dar sobrevida.

No documentário “El Pepe: uma vida suprema”, Mujica fala da riqueza criativa que processos revolucionários têm quando comparados com as ordens jurídicas decadentes que buscam atingir; ordens que representam o congelamento de tempos históricos incompatíveis com novas sociabilidades e dinâmicas produtivas mais adequadas às necessidades das pessoas. Daí nasceram, por exemplo, revoluções como a Jacobina, vinda dos clamores da burguesia por formas políticas que, superando os regimes absolutistas, correspondessem aos ideais iluministas de igualdade e de liberdade formal.

Dos jacobinos aos bolcheviques, da China de 1949 à Cuba de 1959, as revoluções, ensina o filósofo francês Daniel Bensaïd, são sempre intempestivas. Jamais pontuais, administram o efeito surpresa com o risco de apanhar desprevenidos seus próprios atores e atrizes, de modo que, divididas entre o necessário e o possível, entre o cedo e o tarde demais, nunca chegam na hora certa.

É esta a esquina em que nós estamos agora.

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