Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

Considerações sobre o racismo

Nesse momento de exacerbação do individualismo, o planeta transborda os preconceitos que inundam as carcaças dos ressentidos

Vinícius Jr. Foto: X/Reprodução
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No Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas, Arthur de Gobineau celebra a pele branca de Adão:

“Que Adão é o autor de nossa espécie branca, devemos certamente admitir. É bastante claro que as Escrituras querem que entendamos desta forma, já que dele descendem gerações que eram inquestionavelmente brancas. Sendo assim, não há evidência de que, na mente dos primeiros autores das genealogias adamitas, criaturas que não pertenciam à raça branca eram consideradas como fazendo parte da espécie. Não se diz uma palavra sobre as nações amarelas, e é somente por uma específica interpretação, que acho que conseguirei trazer à tona posteriormente, que a cor preta é atribuída ao patriarca Cam.”

Gobineau avança na senda eugenista:

“Todos os homens têm, em igual grau, o poder ilimitado de avançar em seu desenvolvimento intelectual? Em outras palavras, as diferentes raças humanas são dotadas do poder de se igualarem umas às outras? Esta questão é, no fundo, a da perfectibilidade indefinida das espécies e da igualdade das raças entre si.

Em ambos os pontos, eu respondo que não.

John Locke, pai do liberalismo, exigia uma vigorosa ação do Estado para disciplinar a chusma de vagabundos e desempregados. Essa rafameia deveria ser internada para recuperação em workhouses, verdadeiros antecessores dos campos de concentração, ou enviada às gales para retificar o espírito. Locke considerava a escravidão nas colônias um direito indisputável do “homem livre” e redigiu pessoalmente a cláusula da Constituição da Carolina, que afirmava: “Todo homem livre da Carolina deve ter poder absoluto e autoridade sobre seus escravos negros, suas opiniões e religião”. O filósofo investiu no tráfico de escravos negros, enquanto acionista da Royal African Company.

Na Inglaterra dos anos 20 e 30 do século passado, as diferenças educacionais entre as classes sociais estavam legitimadas por suposições pseudocientíficas, mas, na verdade, preconceituosas a respeito da “inteligência”. A eugenia não foi prerrogativa da Alemanha nazista, mas se espalhava por toda a Europa nas asas do pensamento conservador, que entre outras monstruosidades produziu o criminoso nato de Lombroso. Para os eugenistas de então, a capacidade intelectual estava predeterminada por hereditariedade e, portanto, nem todos poderiam se beneficiar da educação

Nos anos 30 do século XX e até recentemente, os campeonatos mundiais de futebol e as Olimpíadas serviram à competição entre as potências e seus sistemas políticos. Hitler tratou de transformar as Olimpíadas de 1936 em uma celebração da superioridade da raça ariana e do Reich de Mil Anos. Não contava com o talento de “Jesse” Owens, o incrível atleta negro que passou a simbolizar a vitória sobre o racismo e seus ideólogos.

Nas últimas décadas, na toada da globalização e do poder incontrastado da mídia, o futebol transfigurou-se em mercadoria cobiçada e paixão desmedida. O jogo da bola com os pés atrai bilhões de torcedores apaixonados por suas paixões, tão humanas quanto inumanas.

Não é surpreendente que a paixão dos apaixonados seja transmutada em racismo. Nesse momento de exacerbação do individualismo, o planeta transborda os preconceitos que inundam as carcaças dos ressentidos, massacrados pela vida de angústias e fracassos nas enxovias da sociedade de massas.

Os valores e as instituições ocidentais – progresso, iluminismo e democracia liberal – batem em retirada diante da ofensiva das milícias que reúnem, no mesmo pelotão, mercenários e buchas de canhão na defesa do liberalismo econômico, do moralismo, do autoritarismo, do nacionalismo, do ódio ao Estado, do conservadorismo cristão e do racismo. Essa rafameia combina o discurso moralista com a conduta amoral, brutalizada e incivilizada.

Nos espaços fabricados pelas novas crenças não é possível manter conversações, porque neles a norma não é a argumentação, mas o exercício da animosidade sob todos os seus disfarces, a prática desbragada da agressividade a propósito de tudo e de todos, presentes ou ausentes, amigos ou inimigos.

As redes sociais, prometidas como o espaço do movimento livre de ideias e as opiniões, transformaram-se num calabouço policialesco em que a crítica é substituída pela vigilância. A vigilância exige convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento. Não se trata de compreender o outro, mas de vigiá-lo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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