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Com Milei na Argentina, Mercosul ficará mais vulnerável na negociação com a UE

Não terá sido por acaso que a União Europeia rapidamente cumprimentou o ganhador e que a imprensa oficialista europeia claramente favoreceu o candidato da extrema-direita.

Capas de jornais argentinos no dia seguinte à vitória de Javier Milei. Foto: Luis Robayo/AFP
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“Nas cidades, algumas senhoras, para ostentar luxo, cobriam suas escravas de joias, enquanto os negros da lavoura, e às vezes até domésticos, andavam maltrapilhos ou quase nus – principalmente depois que o Tratado de Methuen com a Inglaterra tornou caríssimos os tecidos no Brasil. O engenheiro francês François Frézier, ao passar por Salvador em 1714, observou que ‘Dezenove entre vinte pessoas do lugar são negros ou negras seminus – que trazem cobertas somente as partes que o pudor obriga -, de modo que a cidade parece uma Guiné'” – Paulo Sérgio do Carmo

Essa citação tem dupla virtude, neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.

Em primeiro lugar, chama atenção para a forma como a oligarquia nacional tratava os escravizados, negando-lhes todo resquício de humanidade, pela subtração do direito à mais mínima dignidade.

Fica claro que não bastava subtrair-lhes a terra, o continente, a cultura, era necessário aprofundar a violência ao íntimo do ser.

Em segundo lugar, refere-se ao Tratado de Methuen e às consequências nefastas que trouxe a Portugal e, consequentemente, ao Brasil, então colônia de Lisboa.

Esse Tratado iria determinar o subdesenvolvimento de português por três séculos, e o brasileiro, até bem depois da Independência, sendo ainda na atualidade a moldura do pensamento da famosa “bancada do boi” no Congresso, hegemônica também nos meios de comunicação, como Rede Globo e O Estado de S. Paulo, só para citar alguns.

No que consistiu esse Tratado, habilmente negociado pelo diplomata inglês John Methuen, que lhe deu o nome?
O também chamado “Tratado dos Panos e Vinhos” foi assinado em 27-12-1703, entre Portugal e Inglaterra, estando prestes a completar 320 anos da assinatura, portanto.

Consistiu no acordar reciprocidade de compra de têxteis ingleses, por parte de Portugal, e vinhos portugueses, por parte da Inglaterra.

Como os manufaturados agregam mais valor, pelo desenvolvimento tecnológico, a relação de troca não apenas era extremamente desfavorável a Portugal, mas, na medida em que novas técnicas eram incorporadas à manufatura, aquela relação – per se desfavorável – ia paulatinamente se deteriorando ainda mais.

Resultou que o referido pacto foi uma das principais alavancas para a acumulação de capital no Reino Unido, permitindo a Revolução Industrial na ilha bretã.

O saldo, do lado português, foi dramático: três séculos de subdesenvolvimento, em plena Europa.

Pior, como mencionado acima, o setor dominante da oligarquia local assumiu esse pensamento atrasado de trocar produtos primários por manufaturas, deixando claro que contra crenças não cabem argumentos, inclusive históricos.

Entretanto, seguindo o adágio italiano “ainda não tocamos o fundo”, ao que assistimos na atualidade?

À negociação do Mercosul com a União Europeia, exatamente nos mesmos termos!

Trata-se de negociação de acordo que se impulsionou após o golpe de Estado de 2016 (sendo claro o interesse de empresas e governos europeus na ruptura democrática, principalmente para obtenção de campos de petróleo) e que, evidentemente, prosperou sob Temer e Bolsonaro.

Mas, pasmem! Continua a ser negociado!

Em excelente artigo, Paulo Nogueira Batista Jr. alerta para os perigos do acordo em apreço, um Methuen II. Por exemplo, nota o economista:

“Fica estabelecido que as empresas estatais devem agir exclusivamente com base em considerações comerciais em suas compras ou vendas de bens e serviços. Isso cerceia as políticas de preço e conteúdo local dessas empresas, afetando por exemplo as políticas de desenvolvimento e os programas de capacitação de fornecedores utilizados pela Petrobras. A Argentina excluiu diversas estatais estratégicas do alcance do acordo. O Brasil não excluiu nenhuma”.

Nesse sentido, esse pacto seria tão prejudicial ao Brasil quanto a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), que conseguimos evitar.

Ainda pior, com a vitória da extrema-direita na Argentina, o grupo de países ficará mais vulnerável na negociação.

Não terá sido por acaso que a União Europeia rapidamente cumprimentou o ganhador e que a imprensa oficialista europeia claramente favoreceu o candidato da extrema-direita.

Não apenas por isso, mas também, a vitória da extrema-direita pode ser creditada como vulnerabilidade da política externa brasileira.

Doloroso é admitir que a extrema-direita nacional sabe estabelecer suas prioridades melhor do que o centro-esquerda: não é Nova York, é Buenos Aires!

A presença da família criminosa na capital rio-pratense deixou isso patente.

Sem Buenos Aires, o Brasil jamais será um líder regional e, sem o ser, nunca terá a estatura internacional que almeja.

Seria interessante saber quantos diplomatas brasileiros conhecem as cidades argentinas na nossa fronteira. Quantos já estiveram em Puerto Iguazu, Bernardo de Irigoyen, San Tomé ou Passo de los Libres? Em Nova York, muitos…

Depois, temos dificuldade em entender por que a imagem dos militares é melhor, com todos os desmandos deles de que temos notícia…

Em aula recente para reforço de crianças carentes do ensino fundamental, pedi que localizassem a costa do Brasil no mapa: todas apontaram para as fronteiras Oeste, deixando claro para quem damos as costas…

Mudar esse eixo histórico, distorcido pela herança colonial que nos ligava às metrópoles europeias e posteriormente aos EUA, irá requerer algo mais do que a inércia diplomática.

Todo ao contrário: será necessária a refundação da política externa brasileira, na retórica e na prática.

A propósito, CartaCapital publicou recentemente excelente reportagem sobre as enormes carências médicas em toda a área da imensa fronteira brasileira.

O estudo foi feito pelo Conselho Federal de Medicina! Sim aquele bolsonarista, que se negou a denunciar o genocídio promovido pelo charlatão-bufão.

Quando chegamos ao ponto de aquela entidade ver mais longe do que o Ministério da Saúde (inclusive a Fundação Oswaldo Cruz) e o Itamaraty, cabe perguntar como estão nossas estratégias e prioridades internacionais.

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