Política

cadastre-se e leia

Cobertor curto

Os gargalos do SUS são ainda mais graves nas cidades que fazem fronteira com outros países

Diagnóstico. “Falta o básico”, alerta Dilza Ribeiro, coordenadora da Comissão de Integração de Médicos de Fronteira do Conselho Federal de Medicina, o CFM – Imagem: GTS/Defensoria Pública/GOVCE e CFM
Apoie Siga-nos no

Os históricos problemas no campo da saúde pública no Brasil, principalmente em regiões distantes dos grandes centros urbanos, são maximizados em municípios que fazem fronteira com outros países. É o que aponta um levantamento realizado pelo Conselho Federal de Medicina, com base em dados do Ministério da Saúde. Pelo menos 11 estados das regiões Norte, Centro-Oeste e Sul estão situados nos limites com dez países latino-americanos, abarcando 588 cidades, numa faixa de até 150 quilômetros de largura ao longo das fronteiras terrestres, a totalizar 16,7% da área total do País. Menos de 3 mil unidades de saúde estão instaladas nesses municípios, para atender um contingente de quase 12 milhões de pessoas, fora os moradores de países vizinhos que cruzam a fronteira em busca de assistência.

É o caso de Brasileia e Epitaciolândia, no Acre, separados de Cobija, na Bolívia, apenas pelo Rio Acre. Os municípios também estão na divisa com o Peru. “A realidade do nosso município não difere muito de outras cidades do interior, mas moradores de países vizinhos buscam por atendimento no SUS e isso se soma à demanda local”, explica o médico Edson Braga, que trabalha numa unidade de saúde em Brasileia. Ele ressalta que a maior dificuldade é a falta de especialistas. “Nos últimos anos, avançamos em relação à infraestrutura. No entanto, em se tratando de recursos humanos, temos um problema crônico pela falta de especialistas. E ainda existe a necessidade de transferência de casos mais graves para atendimento na capital.”

Além do déficit de infraestrutura e de profissionais, muitos estrangeiros buscam assistência médica no Brasil

Quatro em cada dez municípios fronteiriços não têm leitos para internação de adultos ou crianças, deixando a população de quase 240 cidades sem esse serviço tão necessário. Mais de 150 localidades perderam leitos na rede pública entre 2014 e 2023. “A gente identificou que essas zonas de fronteira precisam ter uma estrutura mínima necessária para que os médicos possam exercer o seu trabalho com eficácia e segurança, no sentido de garantir que os moradores tenham acesso a uma assistência integral. Se não for possível em todos os níveis de complexidade, ao menos nos mais necessários”, destaca Dilza Teresinha Ribeiro, coordenadora da Comissão de Integração de Médicos de Fronteira do CFM. A médica cobra políticas públicas que estimulem especialistas a atuarem na região, com melhores condições de trabalho e remuneração compatível com a especialização.

Das 588 cidades fronteiriças, 268 (45%) não possuem sequer um hospital geral. Outras 320 dispõem apenas de 434 unidades, quadro agravado com o fechamento de 38 centros hospitalares nos últimos dez anos. Para quem necessita de cuidados intensivos, a situação é ainda mais preocupante, pois 92% desses municípios não contam com leitos de UTI. E o cenário já foi pior, o número de leitos de UTI aumentou 47% na última década. O atendimento nas Unidades Básicas de Saúde é outro gargalo. Em 72% dessas cidades houve redução de consultas. É um grave problema, pois 80% da população local depende exclusivamente do SUS para ter acesso à saúde.

Emergência. Mesmo com a recente expansão, nove em cada dez municípios na zona de fronteira não têm leitos de UTI – Imagem: Sílvio Avila/HCPA

No caso de cirurgias, muitas delas são feitas fora da cidade de domicílio do paciente, por falta de estrutura local, incluindo partos. Em 2022, dos 59 mil partos realizados na região, quase 7 mil (12%) mulheres grávidas precisaram ser transferidas para outras cidades para dar à luz seus filhos. A indígena Niara Nukin sabe bem a dificuldade que enfrenta para ter acesso à saúde. A aldeia dela fica na fronteira com o Peru e o deslocamento até o posto de saúde é feito de barco. Ela precisou levar a filha que estava com suspeita de dengue para a emergência de hospital, mas a menina não fez o exame para confirmar o diagnóstico, recebeu apenas um atendimento inicial. “Passaram o remédio sem saber o que ela tinha e mandaram a gente ir para o posto de saúde no outro dia. Às vezes, não tem médico, só técnico de enfermagem. O acesso da aldeia para a cidade é muito ruim, a gente tem de ir de barco e o rio está seco. Eu tive de pagar o exame particular mesmo e o resultado deu um pouco de anemia e plaquetas baixas. A gente mostrou para outro médico e ele falou que pode ser dengue”, diz, lembrando que o atendimento aos indígenas se dá por meio da Secretaria de Saúde Indígena, o que às vezes facilita o acesso, embora também tenha problemas.

No Acre, a área de fronteira concentra 22 municípios, abarcando 906 mil pessoas. Apenas dez dessas cidades têm hospital e somente a capital, Rio Branco, dispõe de UTI. Apesar de não oferecer tratamento intensivo, Cruzeiro do Sul, município a 600 quilômetros da capital, é referência na região, por atender não apenas pacientes acrianos, mas também de cidades vizinhas e dos países fronteiriços. Médico no município há 29 anos, Marcos Lima explica que o hospital de lá é uma espécie de porta de entrada para os pacientes de toda a região. “Embora seja um município bem distante de Rio Branco, nosso principal gargalo hoje é atender a grande demanda de pacientes. A população de Cruzeiro do Sul gira em torno de 100 mil habitantes, começamos a ter certa dificuldade de leitos porque, além da população local, atendemos muitos peruanos e até mesmo moradores do Amazonas. Cruzeiro do Sul acabou se tornando um centro de referência.”

O levantamento do CFM apontou carência de serviços essenciais nas 588 cidades fronteiriças

No Amapá, Amazonas e Pará, a situação é ainda pior: nenhum dos municípios fronteiriços desses três estados tem tratamento intensivo oferecido pelo SUS, deixando mais de 900 mil habitantes de 34 cidades-limite desassistidos. Também na Região Norte, os 42 municípios fronteiriços de Rondônia e Roraima contam somente com três UTIs para atender um contingente de quase 1,7 milhão de pessoas. “Nossa intenção é sensibilizar as autoridades, principalmente o Ministério da Saúde, quanto às dificuldades que os moradores dessas regiões enfrentam. Buscamos sempre ouvir as comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas, porque não adianta a gente discutir algumas questões sem eles estarem no debate. É preciso saber das necessidades de cada uma dessas populações para capacitar as equipes de saúde, pensando em oferecer um atendimento que respeite os aspectos históricos, culturais e sociais”, afirma Ribeiro, acrescentando ser necessário também pensar numa estratégia com foco na prevenção de doenças.

No Centro-Oeste, quase 1,8 milhão de cidadãos brasileiros vivem em 72 cidades-limite em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Dos 28 municípios fronteiriços mato-grossenses, apenas Cáceres dispõe de leitos de UTI pelo SUS. Em Mato Grosso do Sul, quatro dos 44 municípios oferecem o serviço. Ocorre no Sul do Brasil a maior concentração de municípios de zona de fronteira. O Rio Grande do Sul lidera o ranking com 197 cidades, das quais 22 têm UTI e apenas Pelotas dispõe de uma rede com cinco hospitais. No Paraná, dos 139 municípios na divisa com outros países, 75 não possuem nenhum hospital geral e somente em 13 há UTI. Em Santa Catarina, 82 cidades estão situadas em área de fronteira e apenas cinco delas oferecem tratamento intensivo pelo SUS.

Ilustração: Regina Assis

Alvo de críticas desde o seu nascedouro, em 2014, o programa Mais Médico tem sido um parceiro da população nos municípios fronteiriços, uma vez que muitos profissionais da saúde não estão dispostos a trabalhar, e às vezes morar, em regiões tão afastadas dos grandes centros urbanos. Lima classifica como a “cereja do bolo” a atuação desse profissionais. “O Mais Médicos funciona muito bem nessas áreas e contribui para que as regiões mais afastadas também tenham serviço médico adequado.” Ribeiro admite a importância do Mais Médicos, mas reforça a necessidade de se fazer um trabalho de valorização do agente de saúde, não só do ponto de vista profissional em si, mas financeiro também, dando condições de acesso. “O Conselho Federal de Medicina fez todo esse levantamento para chamar atenção das instituições responsáveis, para que elas possam realmente dar uma assistência adequada, de forma conjunta, a toda a população.”

De acordo com o CFM, existem atualmente 16.664 médicos atuando nem áreas fronteiriças inscritos no Cadastro Nacional de Estabelecimentos em Saúde, o que representa apenas 2,9% do total de médicos em atividade em todo o País, conforme registros do próprio Conselho Federal. Segundo a entidade, na última década, houve redução no número de médicos em pelo menos 83 das 588 cidades-limite, embora, paradoxalmente, tenha ocorrido crescimento de 52% de registros de novos profissionais. Sobre a formação de novos médicos, o Conselho vê com cautela a autorização para a abertura “indiscriminada” de novas escolas e faculdades, anunciada recentemente pelo governo Lula.

Ao contrário do que acontece com os médicos, o número de enfermeiros nas cidades fronteiriças aumentou 92% na última década, ainda que represente apenas 2,5% dos 696 mil profissionais registrados no Conselho Federal de Enfermagem. Segundo o CNES, nas áreas de fronteira atuam 17.214 enfermeiros. O mesmo acontece com os odontólogos. Houve um crescimento de 22% na quantidade­ de dentistas nessas cidades, apesar de que em mais de 130 delas ter havido redução desses profissionais. Pelos dados do CNES, 4,2 mil dentistas trabalham em regiões de fronteira, um contingente muito pequeno, apenas 1%, em relação aos 400 mil odontólogos que constam no cadastro do Conselho Federal de Odontologia. •

Publicado na edição n° 1281 de CartaCapital, em 18 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cobertor curto’

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo