Justiça

Carrefour: não se pode desviar os olhares como se desvia o discurso

Após promessas para estancar prejuízo nas Bolsas de Valores, é momento de entender de que empresas estamos falando

Protesto pelo assassinato de João Alberto Freitas no Carrefour (Foto: CARL DE SOUZA / AFP) Protesto pelo assassinato de João Alberto Freitas no Carrefour (Foto: CARL DE SOUZA / AFP)
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No início desse mês de dezembro, o Grupo Carrefour anunciou que vai ‘internalizar’ seus serviços de segurança. A promessa vem após a morte de João Alberto Silveira, homem negro espancado até a morte por dois agentes terceirizados da loja no dia 19 de novembro, véspera do Dia da Consciência Negra.

Seria um avanço para relações de trabalho? É preciso entender de quem e sobre o que estamos falando.

Falamos do Grupo Carrefour ,que atua em 33 países, com mais de 10 mil lojas pelo mundo e 300 mil trabalhadores – 72 mil deles no Brasil. Falamos do segundo maior varejista alimentar do País, com mais de 500 unidades espalhadas pelos estados. Falamos de uma corporação que, desde 2007, tem autorização do Banco Central para atuar como Instituição Financeira e que, em 2011, entrou para o maior grupo financeiro da América Latina depois da compra de 49% das suas ações pelo Itaú.

Estamos falando de um grupo econômico que perdeu 1,75 bilhão de reais em valor de mercado uma semana após a morte de João Alberto.

Estamos falando da empresa que, em dezembro de 2017, dispensou, sob alegação de reestruturação, trabalhadores em greve que lutavam pela manutenção do adicional de horas extras; pelo fim do desvio de função; do assédio moral no trabalho e por tantas outras garantias trabalhistas em risco. Falamos de um grupo reiteradamente demandado na Justiça do Trabalho por terceirizar atividade-fim e até mesmo quarteirizar seus serviços anos antes da reforma trabalhista legitimá-las.

Estamos falando da empresa que, em agosto deste ano, cobriu o corpo de Móises Santos, trabalhador terceirizado que morreu nas suas dependências, com guarda-sóis, tapumes e engradados de cerveja. Falamos de uma empresa que tem por postura não divulgar seus dados estatísticos e que prefere chamar seus empregados de ‘colaboradores’ como se fosse possível haver uma relação de cooperação num sistema onde a venda da força de trabalho se presta, sobretudo, a prover a própria comida.

Moisés Santos, revendedor que faleceu nas dependências do Carrefour Recife e foi coberto com guarda-chuvas.

Estamos falando de aumentar o lucro às custas de jornadas exaustivas, remunerações degradantes, parcos direitos, adoecimentos e mortes no trabalho. Falamos sobre agressão às subjetividades e à sociabilidade no ambiente laboral. Falamos de invisibilização e de fragmentação da consciência de classe.

Estamos falando dos varredores de ruas, dos porteiros, dos coveiros, dos manobristas, dos vigilantes, das trabalhadoras e trabalhadores do setor de limpeza e da conservação. E, sim, falamos também sobre os seguranças do Carrefour e de tantos outros estabelecimentos. Estamos falando sobre a população negra de modo geral e sobre as mulheres negras de modo específico.

Falamos sobre financeirização das relações de trabalho, esvaziamento do sistema produtivo e concentração de mais de 43% da riqueza nas mãos de 10% da população. Ou, como muitos adoram dizer, falamos sobre ‘modernização’ das relações de trabalho que, de modo prático e direto, se reduz a duas palavras: sofrimento humano.

Ou seja: estamos falando sobre terceirização!

Um que fenômeno sistêmico e que, portanto, demanda uma análise conjuntural e não se limita, unicamente, a uma determinada empresa. Óbvio que o Carrefour e os agressores devem ser responsabilizados, mas fato é que ser “moinho satânico” (para usar a expressão de Polanyi) é qualidade nuclear do capitalismo e não se muda essa estrutura corroborando com as ideologias que lhe dão suporte.

 

Essa ânsia de se apontar um culpado é produto da lógica neoliberal e funciona a seu critério. Não se pode desviar os olhares como estrategicamente segue se desviando o discurso. Técnicas de gestão e de qualidade e políticas de treinamento são metodologias que nos remetem aos primórdios do pós-fordismo, incapazes de dar conta da complexidade de um processo que se pauta na precarização de vidas. E que se diga, de certas e determinadas vidas.

Estamos imersos num formato de sociabilidade que chama defensores de direitos fundamentais de radicais. O maior problema é que não há radicalismo algum, assim como não há ingenuidade alguma em defender garantias mínimas pelas vias que nos são concedidas pelo próprio sistema, porque a gente sabe que a transformação estrutural não virá pelo Direito ou pelos contratos firmados com grandes corporações.

Radicalismo é pensar para além do capital – e tem muita gente boa fazendo isso há décadas. Radicais são os movimentos sociais que colocam seus corpos nas ruas, inclusive e apesar da situação pandêmica, em prol da superação de uma racionalidade que determina quem come e quem passa fome, quem vive e quem morre. E isso o movimento negro tem feito, no Brasil e no mundo, de forma irretocável.

Internalizar a segurança não é um avanço contra a terceirização, que tem cara majoritariamente preta e feminina. É condicionar as metodologias de gestão e organização do trabalho ao desempenho das suas ações na Bolsa de Valores. Muito menos é avançar contra a precarização, até porque as ‘pretas da faxina’ seguem e seguirão pelos corredores do Carrefour, das Universidades públicas e privadas, dos Shoppings, sob a condição de terceirizadas ou sob qualquer outra forma de abstração jurídica, enquanto a lógica neoliberal for hegemônica.

De resto, é mais do mesmo: o sistema concedendo migalhas sociais em forma de cala boca para perpetuar suas mazelas.

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