Justiça

Cade o feminicídio que estava aqui? A via crucis é também pós-mortem

Tradição hetero patriarcal racista permeia o olhar judicial sobre a mulher

Feminicídio. Cena da série "Coisa Mais Linda" (Girls from Ipanema)
Apoie Siga-nos no

Se, em 2006, o Estado promulgava a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) como ferramenta de prevenção e enfrentamento às diversas violências contra a mulher, chega-se em 2015, onze anos depois, com o enrijecimento do Código Penal diante do mesmo problema.

A Lei 13.104/2015 estabeleceu o Feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e estipulou que as penas mínimas e máximas passariam a ser alteradas para 12 e 30 anos e não mais 6 a 20 anos como no homicídio simples. Além disso, modificou a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), incluindo o Feminicídio em seu rol. Estamos falando de vidas ceifadas em razão do gênero, conforme trazido nas “Diretrizes para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres”.

Sabemos ou deveríamos saber que amar não é sobre tirar a vida, mas a romantização do assassinato de mulheres sempre esteve presente em enredos da teledramaturgia, das manchetes jornalísticas e do imaginário popular.

“Ah,  ele matou porque amava demais” ou “Ah, ele matou porque estava cego de ciúmes”. Ocorre que, infelizmente, esse discurso também está presente nas arenas do Direito. E não estou falando da série “Coisa Mais Linda” que, ambientada nos anos 50, retratava em uma de suas cenas o julgamento de um ex-marido que havia assassinado sua esposa com tiros à queima-roupa após um longo histórico de violência contra a mesma.

Nos dias de hoje, uma suposta legítima defesa da honra masculina, alegada na referida série, ainda é invocada nas argumentações em prol da absolvição de homens acusados de feminicídio, mesmo o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já tendo refutado objetivamente essa tese como fundamento válido à absolvição dos uxoricidas.[2]

Mas, não é somente nos tribunais que vemos esse tipo de conduta acontecer. Em Pernambuco, até 2017, a nomenclatura “crime passional” ainda era vigente nos registros da Secretaria de Defesa Social. Neste mesmo ano, compus a equipe que planejou e executou a campanha “Isso é Feminicídio” cujo objetivo era convencer o Governo do Estado a substituir o termo “crime passional” por “feminicídio” nos boletins de ocorrência da Polícia Civil. A partir do requerimento da Deputada Simone Santana (PSB) ao governador Paulo Câmara (PSB), tivemos a mola propulsora para lançar a campanha nas redes, na mídia e nas ruas.

Ato da campanha “Isso é feminicídio!”. Foto: Divulgação

Foram três meses afirmando que não se tratava de mera questão textual e discutindo a importância de nomear corretamente aquelas mortes para implementação de políticas públicas efetivas e eficazes na identificação, prevenção e enfrentamento do problema. Assim, além da nossa reivindicação ter sido atendida através do Decreto nº 44.950/2017, foi criado um grupo de trabalho interinstitucional com representantes do Executivo e de instituições do sistema de justiça, no intuito de processar e organizar dados de mortes violentas de mulheres.

Como nem só de alegrias se faz a vida, a advogada Albéria de Menezes apresentou dados complexos e alarmantes sobre a efetividade da Lei 13.104/2015, no referido estado. Verificou-se que dos 258 inquéritos policiais concluídos com indicação de Feminicídio, no período de 2015 a 2017, apenas 6 prosperaram enquanto  processos com a referida qualificadora mantida. A medida em que o caso avança na linha de montagem do sistema de justiça criminal vai ficando mais difícil convencer as autoridades que tem-se ali uma mulher assassinada nos termos do Art. 121,  VI, CP (Código Penal).

Em outras palavras, a nossa via crucis é também pós-mortem.

Nesta altura, é imprescindível lembrar que no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, das 1.206 mulheres vítimas de Feminicídio em 2018, 61% delas eram negras. É importante salientar que não enxergo no endurecimento das leis penais a salvação incondicional para todos os males.

Gostaria de convidar a leitora e o leitor a verter o seu olhar para a figura de quem decide sobre a manutenção da qualificadora nas sentenças de pronúncia ou impronúncia, na fase que antecede o julgamento pelo Tribunal do Júri. Nesse contexto, tornam-se indispensáveis alguns questionamentos: O que compõe e influencia suas decisões? Como elas são construídas? Estariam juízes e juízas recebendo formação adequada para enxergarem os pilares patriarcais, machistas e racistas que ergueram a nossa sociedade?

Se considerarmos que nos quadros da Magistratura Nacional encontramos nomes apontando uma “Discriminação do Gênero-Homem face à Lei Maria da Penha”[3] como o juiz Gilvan Macêdo e condenações de homens negros “em razão de sua raça”, como frisou a juíza Inês Zarpelon em sentença que viralizou nas redes sociais, PREOCUPAR-SE É PRECISO! Sendo assim, mostra-se crucial um judiciário plural em sua composição no tocante à gênero, raça, classe e visões de mundo. Nesse sentido, enxergo como animadora a movimentação que vem ocorrendo no Conselho Nacional de Justiça – CNJ na busca por igualdade racial no judiciário.

O Brasil tem uma sofisticada política de morte, com profundas raízes coloniais, onde o Estado decide quais vidas importam e não tenho dúvida de que a ausência de uma prestação jurisdicional efetiva e digna também é uma forma de violência. E se você se diz antirracista, um bom começo é reconhecer o fracasso do Estado de Direito perante nós mulheres negras e passar a agir em prol de uma real transformação. Ou seria revolução?


[1] Brasil. Secretaria de Políticas para Mulheres. Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. Brasília, DF, 2016.

[2] (RESp n. 1517/PR, Rel. Ministro José Candido de Carvalho Filho, 6ª T., DJ 15/4/1991).

[3] SANTOS, Gilvan Macêdo dos. A Discriminação do Gênero-Homem no Brasil em face à lei Maria da Penha. Editora Decisium. 2017.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo