Diversidade

As pessoas trans não são rivais do movimento de mães

‘Como afrotransfeminista, aprendi com Audre Lorde que não existe hierarquia de opressão’, escreve Maria Clara Araújo

Foto: Reprodução/O Povo Foto: Reprodução/O Povo
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A professora Esther Solano escreveu para a CartaCapital que a acusação de transfobia ao post da co-deputada Raquel Marques foi um mero “erro de interpretação”. Ora, não me parece razoável recorrermos ao argumento linguístico diante de uma postagem que suscitou publicamente uma rivalidade que nunca existiu no interior dos movimentos sociais brasileiros: as pessoas trans não são rivais do movimento de mães. 

O texto de Esther Solano é o desdobramento de inúmeras discussões válidas em torno da expulsão de Raquel Marques da Mandata Ativista, mandato coletivo eleito como Bancada Ativista para a Assembleia Legislativa de São Paulo, pioneiro neste tipo de arranjo político no estado. 

Não abordarei a questão da expulsão e de como esse processo ocorreu. A perspectiva desenvolvida neste texto leva em conta minha experiência na condição de travesti, afrotransfeminista, formada em Pedagogia pela PUC-SP (fui a primeira travesti nos cursos de pedagogia das duas universidades que estudei em minha graduação) e assessora parlamentar na Assembleia Legislativa de São Paulo, compondo a Mandata Quilombo da deputada Erica Malunguinho (PSOL). 

Em pleno 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans, em que ocorreu o lançamento da Campanha “Travesti e Respeito”, resultado de um diálogo inédito entre o Movimento Trans e o governo federal, Raquel Marques publica o seguinte, em suas redes sociais: “Queria que um dia o desrespeito ao direito à infância e adolescência ganhasse na mente da esquerda a mesma indignação que a transfobia causa”. 

O movimento trans, diante de mortes como a de Keron e de tantas outras, também exige visibilidade ao desrespeito e negligência às infâncias e adolescências. Por isso, não somos antagonistas do movimento de mães

Ao ler a publicação, o primeiro questionamento que me veio à mente é se a co-deputada estava atenta aos embates político-ideológicos estabelecidos na Alesp nesta legislatura, visto que a pauta das infâncias e adolescências é CARA para as pessoas trans.

Exemplos: em dois anos na Alesp, o que vemos em proposituras legislativas e discursos proferidos pelas/os parlamentares é uma institucionalização da transfobia, tendo como um dos focos centrais as infâncias e adolescências trans. 

Entre 2019-2021, a ALESP presenciou

1) Projetos e discursos contrários ao acolhimento multidisciplinar de crianças e adolescentes trans

2) projetos e discursos contrários à propagandas infantis que abordam as diversidades de gênero e sexualidade

3) projetos e discursos que acusam livros infantis de estarem disseminando a falaciosa “ideologia de gênero”.

Enquanto articuladora política e em diálogo com os Movimentos LGBTQIA+, inúmeras foram as ligações de mães e pais preocupadas/os com o andamento desses projetos na Assembleia Legislativa de São Paulo, visto que atingem diretamente o trabalho incessante dessas famílias em acolher suas/seus filhas e filhos. 

Os interesses coletivos da população de travestis e transexuais não estão longe da agenda do Movimento de Mães. Afinal, também somos mães, pais e constituímos famílias. Aliás, é um desafio para o poder público entender as mudanças necessárias para que essas mães e pais trans possam vivenciar seus processos familiares de maneira digna, uma vez que as maternidades e cartórios também estão comprometidos com a transfobia institucional e suas burocracias, como no caso do casal em Santa Catarina que não conseguiu registrar o filho

Essas infâncias e adolescências trans estão sendo desrespeitadas ou até assassinadas. Lembremos de Keron, uma menina trans de 13 anos que foi brutalmente assassinada no Ceará. O movimento trans, diante de mortes como a de Keron e de tantas outras, também exige visibilidade ao desrespeito e negligência às infâncias e adolescências. Por isso, não somos antagonistas do movimento de mães.

Nossos movimentos se completam, retroalimentam-se em um horizonte de luta democrática que indica um mesmo desejo: o de que nossas crianças, em suas singularidades, possam viver. A quem interessa contrapor a pauta das infâncias e adolescências à pauta trans? 

No que tange à transfobia e à esquerda, questão central da publicação de Raquel Marques, a postura da co-deputada e sua elaboração em poucas linhas não me parecem igualmente atentas à realidade vivida em quase 30 anos de movimento trans no Brasil. Vejamos: apenas em 2018 travestis e mulheres trans foram eleitas deputadas e co-deputadas. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o estado de São Paulo foi o estado que mais matou pessoas trans em 2019 e 2020. 

Nas últimas semanas, três parlamentares trans foram vítimas de violência política de gênero. O Brasil é o país mais perigoso para a população trans, mas ainda assim nos faltam políticas públicas de enfrentamento ao genocídio da população trans e posicionamento por parte dos partidos de esquerda, que ainda hoje subfinanciam as candidaturas de pessoas trans.

A recente vitória na Câmara de São Paulo não é regra, mas exceção, e aí mora a falsa simetria elaborada por Raquel Marques. Quaisquer políticas que versam sobre direitos humanos enfrentam grandes entraves neste momento, e aqui incluo a população trans. 

A publicação da co-deputada Raquel Marques mais demonstrou uma insatisfação pessoal, do que uma reflexão consistente de quem se propõe a analisar e comparar as políticas públicas  que contemplam o movimento trans e o ovimento de mães. Afinal, se formos avaliar a existência de políticas públicas específicas para a população trans no estado de São Paulo, a publicação de Raquel não faz o menor sentido. 

Há uma articulação perversa entre grupos conservadores, ávidos por utilizar a figura de crianças e adolescentes como ferramenta de combate ao acolhimento de pessoas trans nas escolas e hospitais

Na condição de uma pessoa que já saiu da Assembleia Legislativa de São Paulo às 23 horas, depois de acompanhar discussões transfóbicas sobre pessoas trans nos esportes, posso afirmar: aquele espaço está comprometido em minar as poucas conquistas que alcançamos nas últimas décadas.

O que vemos nos plenários estaduais e federais não é a subalternização dos interesses do movimento de mães diante da “agenda trans”. Pelo contrário, o que presenciamos é uma articulação perversa por parte de grupos conservadores, ávidos por utilizar a figura de crianças e adolescentes como ferramenta estratégica de combate ao que pessoas trans estão pautando como necessidades básicas: o acolhimento em escolas e hospitais. 

Para mim, um alerta se acendeu quando a deputada Janaína Paschoal, grande mobilizadora contra o atendimento de crianças e adolescentes trans em ambulatórios públicos e particulares no estado de São Paulo, veio a público se posicionar sobre o caso de Raquel Marques. Afinal, qual o interesse de Paschoal ao se situar publicamente nesse debate? Sobretudo, considerando os alinhamentos da referida deputada com as feministas transfóbicas. Na minha perspectiva, tem faltado análise crítica sobre toda essa situação. 

Como afrotransfeminista, aprendi com Audre Lorde que não existe hierarquia de opressão. Assim, reafirmo: as pessoas trans não são rivais do movimento de mães e não nos interessam quaisquer malabarismos que tentem polarizar esses dois movimentos cruciais para as lutas democráticas no Brasil. 

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