Justiça

Ainda é tempo de mulunguzar

Como afirma João Mulungu, herói da resistência negra de Sergipe, ‘onde houver um negro, aí eu estou!’

Marcha das Mulheres Negras, na orla de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, em 2019. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Nasci em 1975. Durante minha infância e adolescência, sendo uma pessoa negra, não me reconhecia nos seriados de TV, nos desenhos animados, nas propagandas ou anúncios de outdoor. Era um apaixonado pelas aventuras do Sitio do Pica-pau amarelo, no qual, infelizmente, as representações das pessoas negras eram atravessadas por muitos estereótipos mantidos pelos termos racistas de Monteiro Lobato.

Quando criança, não me recordo de ter um herói negro para chamar de meu.

Para a psicologia, o mito do herói mobiliza a fantasia infantil de forma muito rica e produtiva. As crianças projetam sobre os heróis e as heroínas os seus ideais, sonhos e aspirações, realizando-se projetivamente neles e nelas. O herói inspira. Mas se você os tem. A ausência de protagonistas com uma estética negra, atuando em papeis identitários positivos, aparece, portanto, como mais uma lacuna na formação da subjetividade do povo preto. Sempre nos faltou uma Wakanda, na qual as  pessoas negras fossem retratadas de maneira altiva, não subalternizadas. Bonitas, mas também intelectualizadas. Um lugar em que a liberdade não fosse apenas o antônimo de escravidão.

Esse povo negro ainda precisa conhecer os seus heróis e suas heroínas. Em um Brasil colonial e, portanto, racista e brancocêntrico, os feitos heróicos dos nossos protagonistas foram sempre invisibilizados.

Ser herói ou heroína é indicativo de alguém com feitos notáveis, sendo sinônimo de audácia, distinção, notabilidade e valentia.

Somente na minha juventude, tive o encontro com meu primeiro herói negro nacional: Zumbi dos Palmares (1655 – 20/11/1695). Foi através da Lei 9.315, de 20/11/96 que Zumbi foi erigido a herói brasileiro, com seu nome inserido no Livro de Aço dos Heróis e Heroínas Nacionais. Seria uma exceção.

Ao seu lado, dentre os homenageados, como negros podemos destacar tão somente Machado de Assis, Luiz Gama e sua mãe Luiza Mahin, Dandara dos Palmares, o Dragão do Mar e Maria Felipa de Oliveira. Atualmente são, ao menos, 52 personalidades homenageadas. Algumas, embora já incluídas por lei, não têm seus nomes gravados no livro.

Luiz Gama (1830-1882), ícone da defesa dos povos escravizados e da luta pelo abolicionismo.

Olhando de uma perspectiva da condição do herói como alguém que é capaz de suportar exemplarmente uma sorte incomum ou que arrisca a vida pelo dever ou em benefício de outrem, nosso país tem uma dívida enorme pelo apagamento de grandes personagens.

E sem qualquer intuito de esgotar o tema, mas, sim, de escurecer os fatos invisibilizados pelo clarão de uma branquitude que não conseguiu dar valor àqueles e àquelas que foram heróis contra escravidão, gostaria de apresentar a você um herói negro do estado em que nasci:

João Mulungu.

Nascido em 1851, em terras sergipanas, sua história de luta pela liberdade se inicia ao ver a sua mãe morta a chicotadas. A partir desse episódio, Mulungu inicia uma trajetória que o levará a se tornar o grande líder quilombola de Sergipe na segunda metade do século XIX, colaborando com a fuga de milhares de pessoas escravizadas naquele estado.

Sua história é comparada à de Zumbi dos Palmares, tanto pela dedicação de suas vidas à mesma causa, pela liderança, quanto pelo fato de que ambos foram perseguidos e assassinados pelos mesmos motivos, fruto de traição.

Segundo vários historiadores, antes da sua morte, Mulungu teria dito: “Nunca tive a vida como contemplação de mim, meu povo é minha vida, ela se multiplica. Onde haja um negro aí eu estou”. Como símbolo de resistência do seu povo negro, Sergipe tem o seu próprio dia da consciência negra: 19 de janeiro, data em que, em 1876, o Zumbi sergipano foi preso.

João Mulungu lutou bravamente pela liberdade. Mas o que seria lutar pela liberdade na época em que Mulungu viveu, senão resistir contra um regime sórdido, escravizante e desumanizante, porém legal?

Certo é que nossos heróis de um passado colonial não muito distante viveram no limiar entre a legalidade e a injustiça. Somos herdeiros daqueles que lutaram contra o status quo, de um sistema que, naqueles séculos (?!), banalizava a dor, normalizava a escravização do homem pelo homem, tudo na conformidade da lei.

Da minha infância aos dias atuais, conhecidos ou não, novos heróis e heroínas surgiram no cenário nacional, abrindo nossos caminhos para a liberdade e justiça de outras maneiras, em outros espaços, sendo resistência. Hoje os conheço e ensino aos mais jovens que tivemos Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Lima Barreto, Juliano Moreira, Neusa Santos Souza, Antonieta de Barros, Ruth de Souza, Carolina Maria de Jesus, Milton Santos e tantos outros e outras nas mais diversas áreas do conhecimento. Tiveram poderes extraordinários, utilizados nas artes, na medicina, na escrita ou em sala de aula.

Nossos heróis não se calaram. Mulunguzaram. Porque para mim, mulunguzar terá sempre o significado de resistência, com multiplicação de existência. Mulungu sabia que sua vida estaria permanentemente conectada à do outro e que não seria pleno sozinho. Por isso ele é herói. Ninguém tire de nós os nossos heróis.

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