Opinião

A verdade alumia a mentira

‘O mal, a mentira, até mesmo a morte não representam o fim do bem, ao contrário, estão fadados a serem iluminados por ele’, escreve Rondó

Foto: Andre Coelho / AFP Foto: Andre Coelho / AFP
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“A ordem reina em Berlim!’ Seus tolos, lacaios! Sua ‘ordem’ está construída sobre a areia. Amanhã a revolução ‘tornará a se levantar, com canglor de armas’, e proclamará ao som das trombetas: Eu era, sou e serei!”
Rosa Luxemburgo.

Estas foram as palavras derradeiras daquela revolucionária polonesa, escritas na noite anterior ao seu assassinato, segundo aprendemos em “Rosa Vermelha”, de Kate Evans, edição conjunta da Editora Martins Fontes e da Fundação Rosa Luxemburgo.

Lembremos que Rosa era judia, sendo muito significativo que reproduza literalmente o nome de Javé, “Eu Sou” em Hebraico, no momento de sua despedida da vida.

O forte simbolismo leva-nos a refletir sobre o significado das coisas e suas múltiplas camadas de sentidos.

Quão desafiante é buscar a essência das pessoas, da história, da política, dentre outras fontes de interesse.

Trata-se de verdadeira arqueologia, busca incessante do discernimento, da separação entre o adjetivo e o substantivo, da luz e das sombras.

Não sei quanto se explorou a pertença judaica de Rosa Luxemburgo, na explicação do ódio de que foi vítima, até dos próprios companheiros de partido.

Na Europa do Leste do fim do século XIX e início do XX, os judeus corriam inumeráveis riscos, sendo frequentes os pogroms contra a comunidade judaica, em que vilarejos e cidades inteiras por eles habitadas eram alvo de ataques, assassinatos e todo tipo de violência física e patrimonial.

Rosa pagou caro pela busca do significado dos tempos: mulher extremamente culta, aliava o saber à intuição, tornando suas análises políticas potentes, pois fruto daquela combinação incomum de coração e mente.

O próprio líder da Revolução Russa, Lenin, demonstrou dificuldade em entendê-la, o que talvez possa ser explicado pela cultura machista e anti-semita da Rússia de seu tempo, a qual não deixaria de permear também a esquerda revolucionária.

A busca de Rosa pelo significado mais profundo da história, dos processos e construções populares levou-a à pesquisa de sociedades indígenas de comunismo primitivo, chegando a fazer estudo comparativo entre a República dos Guarani; o império Inca, no Peru; e os índios Iroqueses, no Canadá.

Assim, colocou em evidência a necessidade de se buscar o significado das experiências humanas realizadas, na busca da utopia da terra sem males.

Com efeito, não seria esse um objetivo primordial para a formação política, a busca dos significados? Como podemos conseguir mudanças sociais, sem entendermos os sentidos, da arquitetura à geopolítica, por exemplo?

Não estaria a verdade ao alcance dos que a buscam? “Batei e a porta se abrirá”, já disse o Cristo.

Não seria esse o motivo que levou o desgoverno a redução tão drástica do orçamento da pesquisa, muito inferior ao valor do leite condensado, superfaturado, que teria sido adquirido pelo genocida para não se sabe o quê?

De fato, a ciência ameaça o engano, pois a verdade alumia a mentira.

Nesse sentido, a obra de Kate Evans traz novas luzes sobre a cumplicidade entrevo pensamento e ação de Leon Trotski – o revolucionário russo que liderou o Exército Vermelho, também ele judeu – e a polonesa (de nascimento e cultura), alemã (de adoção), russa (por ser a Rússia potência ocupante da Polônia naquele período), Rosa Luxemburgo.

Destarte, Evans observa: “Os seguidores de Leon Trotski…tomaram para si a causa dela, não somente na Europa, como também nos Estados Unidos (onde durante muito tempo se concentrou a maioria deles). Em suas revistas, publicavam muitos ensaios aclamando-a como a grande líder que, caso houvesse sobrevivido, teria concordado com Trotski e apoiado suas estratégias…não somente os socialistas de tendência reformista como também os socialistas de esquerda (os movimentos de juventude em geral) continuaram a reverencia-la como mártir ao lado dos seguidores de Trotski…as reimpressões mais frequentes dos ensaios de Luxemburgo, mais uma vez através de pequenas edições de partes isoladas de sua obra literária, apareceram nas revistas e panfletos do movimento trotskista em muitas partes do mundo. Corriam boatos acerca de antissemitismo institucionalizado e campos de trabalho escravo.”

Importante notar que ambos os revolucionários fruíram de autoridade que não buscaram na força, mas na legitimidade, resultante da coerência entre teoria e prática. A mesma que outro judeu (palestino de nascimento), o Cristo, demonstrou ao ensinar na sinagoga um ensinamento novo, “com autoridade”, ao contrário dos mestres da Lei, sem autoridade, por não aliarem coerência, prática, aos seus ensinamentos.

A paranóia estalinista, que se seguiria, demonstrou como os desejos não realizados de igualdade, democracia e liberdade, preconizados por Rosa, viriam à luz em seu avesso: a dominação, o autoritarismo, a ditadura.

No Brasil, atualmente, vivemos essa condição de avesso da história, mas o mal, a mentira, até mesmo a morte não representam o fim do bem, ao contrário, estão fadados a serem iluminados por ele e serem reduzidos a meros preconceitos, medos, fatuidade em última instância.

A palavra final cabe à vida, não à morte.

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