Ricardo Carneiro

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É professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

Opinião

As assimetrias do mercado de trabalho em 2023

Dados mostram que será crucial manter elevado o crescimento econômico em 2024 para lograr um desempenho adequado do emprego

Foto: Mauro Pimentel/AFP
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A divulgação recente das duas principais pesquisas sobre o mercado de trabalho brasileiro, a PNAD-C e o CAGED, com dados relativos ao ano de 2023, permite analisar com mais profundidade o que se passou nesse crucial segmento da economia brasileira. Como mostraremos a seguir, a marca do seu desempenho é a disparidade, não só no comportamento de variáveis importantes como também na comparação dos resultados entre as fontes estatísticas.  Por sua vez, o pano de fundo, nem sempre considerado nas análises, é o evento extremo da pandemia, cujo impacto se desdobra pelo triênio 2021-2023. Com tudo isto, é possível enxergar 2023 como um copo meio cheio ou meio vazio, mas as assimetrias são suficientemente fortes para não referendar as interpretações dos economistas panglossianos ou daqueles dos mercados financeiros que enxergam um significativo dinamismo no mercado de trabalho brasileiro.

Comecemos pela taxa de desemprego, de 7,4%. Para o IBGE, é a menor taxa observada desde o trimestre findo em dezembro de 2014. De fato, os dados dos últimos três anos – 2021 a 2023 – mostram uma significativa queda do desemprego. Todavia, a instituição e os economistas que repetem esses números deveriam alertar para os problemas da comparabilidade dessas taxas com o período pré pandemia. Isto porque há uma mudança significativa da participação da população em idade ativa na força de trabalho. Ou seja, a partir de 2020, e mantendo-se até 2023, a taxa de participação caiu cerca de 1,5 pontos percentuais, em relação a 2019, o que retirou da força de trabalho cerca de 4,7 milhões de pessoas. Se, como decorrência, essas pessoas estivessem na força de trabalho, ampliariam o total de desempregados de 8,1 para 12,8 milhões. O recálculo da taxa de desemprego levaria a um valor de 11,2% e não de 7,4%.

A explicação para a queda da taxa de participação que ocorre a partir da pandemia está relacionada à ampliação dos programas de transferência de renda. Eles deram a opção à parcela da força de trabalho pior remunerada e menos qualificada de não participar do mercado de trabalho. Ou seja, os programas protegeram a renda – e não a ocupação – dos mais pobres. O impacto foi muito positivo, inclusive porque tem efeitos nos níveis de remuneração pressionando-os para cima. Porém, não há relação direta entre esta mudança na oferta de mão de obra e o pretenso dinamismo do mercado de trabalho. Vale dizer: parte da redução da taxa de desemprego não está vinculada a este dinamismo.

Outro aspecto importante do mercado de trabalho foi a ampliação das ocupações em 3,8% no ano de 2023, dando sequência à recuperação pós-pandemia observada em 2021 (3,3%) e 2022 (8,4%). A taxa de crescimento foi expressiva, mas aqui cabem algumas considerações. Uma elasticidade-emprego do PIB, acima da unidade, vale dizer, de 1,3 é um número inusitado. No triênio 2017-2019, o crescimento anual médio das ocupações foi de 1,5%, equivalente ao do PIB, resultando numa elasticidade do emprego igual à unidade. No período 2003-2013, ela situou-se entre 0,5 e 0,8. Já no triênio pós pandemia 2021-2023, o crescimento médio anual alcançou 5,1% e a elasticidade, 1,5. Ou seja, este ritmo está influenciado pela recuperação das perdas do ano da pandemia que ainda marcou 2023.

Há fartas evidências de que o ritmo de crescimento das ocupações está influenciado por eventos extremos recentes, como a pandemia, e provavelmente não se sustentará – nos padrões observados de elasticidade-emprego-produto -, embora os economistas ortodoxos advoguem que estamos diante de uma mudança estrutural, resultante da reforma trabalhista e do barateamento do custo do trabalho. Em sentido contrário, os últimos dados relativos ao quarto trimestre de 2023, seja por conta da desaceleração do crescimento ou do esgotamento do efeito recuperação pós-pandemia, indicam forte arrefecimento. O crescimento anual de 3,8% contrasta com aquele do último trimestre de 2023 contra o homólogo de 2022, cerca de 1,6%, ou contra o terceiro trimestre do mesmo ano, de aproximadamente 1,1%. Essas constatações mostram o quanto será crucial manter elevado o crescimento econômico em 2024 para lograr um desempenho adequado do emprego.

Um aspecto sobre o qual não há dúvidas nem ambiguidades se refere à baixa qualidade das ocupações acrescentadas em 2023, mormente no último trimestre. Nesse caso é importante apontar para a retomada do aumento da taxa de informalidade. Ela cai significativamente em 2020, em razão de os empregos formais estarem mais protegidos, mantém-se relativamente constante no triênio 2021-2023, mas, em 2023, volta a crescer a ritmo moderado.

Esta inflexão da taxa de informalidade é reflexo, em 2023, do crescimento simultâneo de ocupações formais e informais com peso diferenciado dessas últimas. O aumento das formas mais precárias de ocupação em todos os segmentos ocupacionais é significativo. Alguns números ilustram a afirmação: os empregados do setor privado com carteira ampliam-se em 5,8% e os sem carteira em 5,9%. Noutros segmentos: 8% para o trabalho doméstico sem carteira, contrastando com o aumento de apenas 0,9% para os formalizados; 7% para o empregado público com carteira e 14,7% para o sem carteira; nos trabalhadores por conta própria, queda (-1,8%) naqueles com CNPJ e aumento (1,8%) nos que não o possuem.

No último trimestre de 2023, a tendência à informalização parece se consolidar. Isto porque em todos os segmentos ocupacionais – à exceção do setor público – amplia-se a diferença entre o crescimento da ocupação formal e informal em favor desta última. Esses dados sugerem, para além da retomada da informalização, uma significativa e crescente polarização no mercado de trabalho brasileiro.

As informações sobre rendimentos e, em decorrência, sobre a massa salarial apresentadas pela PNAD-C mostram dados muito peculiares, que exigem um esforço analítico particular para desvendar seu significado. Muito provavelmente, os dados refletem o peso dos segmentos informais na economia, a sua heterogeneidade e a dificuldade de captar com mais precisão seus rendimentos, bem como a grande desorganização do mercado de trabalho que resultou da pandemia.

De acordo com a PNAD-C em 2023, a massa salarial teria crescido 11,7% como resultado do aumento do rendimento real médio de 7,2% e de 3,8% da ocupação. Segundo os dados apresentados nessas publicações, esses números seriam um recorde histórico. Compare-se por exemplo com o ano de 2013, no qual o crescimento do PIB foi de 3,3%, num período no qual o mercado de trabalho estava de fato aquecido. A massa salarial cresceu 5,3% como produto do aumento de 3,3% do salário médio e de 1,9% da ocupação. Também chama a atenção o fato de que o crescimento dos rendimentos é significativamente maior nos setores informais vis a vis os formais, o que reforça a hipótese de que os primeiros, por estarem menos protegidos, tiveram uma redução muito significativa das remunerações e uma recuperação maior e mais estendida no tempo. O crescimento médio da economia de 3% a.a. em 2022 e 2023 ajudou bastante.

A análise dos dados trimestrais lança luzes adicionais sobre os esses números. Para além das dificuldades de medição, apontadas acima, os dados podem estar sendo distorcidos pelas bases de comparação muito baixas que decorreram dos impactos da pandemia. Os efeitos desta última sobre os rendimentos são defasados, ou pelo menos assim aparecem na PNAD-C. Ou seja, eles ocorrem nos anos de 2021 e primeiro semestre de 2022. Assim, o rendimento médio real caiu durante cinco trimestres seguidos – do primeiro de 2021 até o segundo de 2022 -, para um patamar cerca de 15% menor do que no triênio antes da pandemia. Por essa razão, quando se observa a sua recuperação, por meio da variação entre trimestres homólogos, a aceleração e a desaceleração do crescimento são expressivas: ele sai de 8,2% no último trimestre de 2022 para o 3,1% no trimestre final de 2023.

Um detalhamento da análise levando em conta o emprego formal pode se valer dos dados do CAGED, cuja cobertura é mais ampla, por se tratar de um Cadastro informado pelas empresas. A trajetória do emprego formal divulgado pelo CAGED mostra uma perda limitada na pandemia (-0,5%), por conta da proteção concedida ao emprego formal, e uma rápida recuperação em 2021 (7,4%), com expressiva desaceleração em 2022 (5%) e 2023 (3,5%).  Há divergências importantes com os dados similares da PNAD-C, que mostram não só uma queda mais intensa na pandemia (-6,2%), como uma recuperação mais defasada no tempo, projetando-se para 2022 (9,8%) e 2023 (5,8%).

Voltando aos dados do CAGED, eles mostram um desempenho no mercado formal após a pandemia superior ao do período 2017-2019, embora parte desse crescimento no triênio 2021-2023 se deva à recuperação do impacto desta última. A rápida desaceleração é uma evidência marcante disso, a despeito da manutenção da taxa de crescimento da economia, até meados de 2023. O ritmo da criação de empregos sofre quedas sucessivas, determinadas não só pelo efeito de recuperação do estoque, como também pelo menor dinamismo na geração de novos postos. Assim, em 2021, criou-se em média 230 mil empregos por mês, em 2022, 167 mil e em 2023, 123 mil.

É na comparação da evolução dos rendimentos dos empregos formais que os dados do CAGED e da PNAD-C são mais divergentes. As informações do CAGED mostram salários com aumentos muito moderados em 2023, com crescimento anual de apenas 1,1%, num contexto temporal de queda dos salários médios reais: (-2,5%) em 2022 e (-4,5%) em 2021. Há duas explicações plausíveis para o mau desempenho dessas remunerações: a composição setorial do crescimento e as mudanças da regulação do trabalho, ou seja, a reforma trabalhista.

A maior parte do crescimento do emprego formal ocorreu no segmento de serviços (60%), parcela expressiva dos quais em segmento de baixa produtividade e remuneração. No ano de 2023, a totalidade do emprego criado ocorreu na faixa de renda abaixo de 1,5 salário-mínimo. Na verdade, houve uma redução absoluta dos empregos para os rendimentos acima de 2,0 salários-mínimos. Por fim, os trabalhadores denominados de atípicos, vale dizer, precarizados, vem ampliando a sua participação no estoque de emprego, atingindo 18% do total neste ano. Um mercado de trabalho com essas características, mesmo no segmento formal, dificilmente pode ser caracterizado como dinâmico.

A redução das assimetrias no mercado de trabalho no Brasil exigirá mudanças substantivas. Uma delas, talvez a principal, diz respeito à mudança da composição do crescimento em direção a atividades de maior produtividade. Nesse caso, mesmo as transformações exitosas tomarão tempo para se materializar. Enquanto isso, é necessário assegurar o aumento das ocupações e a redução da sua precarização. No contexto de esgotamento da recuperação, após a pandemia, o crescimento da economia será uma condição essencial para isto. A rediscussão e a revisão do marco regulatório serão outras medidas indispensáveis. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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