Fernando Cássio

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Professor da Faculdade de Educação da USP. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Opinião

A reforma da reforma do Ensino Médio

A bancada petista pode ter chiado, mas parte do governo ficou aliviada com Mendonça Filho, o pai da reforma original, na relatoria do PL

O deputado Mendonça Filho. Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados
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Com algum atraso, o governo Lula enviou à Câmara dos Deputados o projeto de lei 5.230/2023 de “reforma da reforma” do Ensino Médio, solicitando que ele tramite em regime de urgência.

De acordo com seus elaboradores no Ministério da Educação, o texto do PL exprime o consenso possível entre, de um lado, estudantes, professores, pesquisadores, movimentos sociais, sindicatos e a sociedade organizada em torno da luta pelo direito à educação nas últimas décadas; e, de outro, as fundações e institutos empresariais (e seus respectivos tentáculos dentro e fora dos governos) que criaram e implementaram a reforma conhecida pelo nome-fantasia de “Novo Ensino Médio” (NEM).

O que o PL propõe é atenuar a tragédia do NEM em alguns pontos e, em outros, deixar tudo como está. Pontos positivos: devolver aos/às estudantes o patamar mínimo de 2.400 horas totais de Formação Geral Básica (que haviam sido achatadas para um máximo de 1.800 horas) e sublinhar a obrigatoriedade do ensino presencial (pondo fim à farra do EaD precário que a reforma legalizou).

Pontos negativos: manter a lógica fragmentadora (e comprovadamente fracassada) dos itinerários formativos, bem como o modelo rebaixado de “educação profissional” do NEM (com cursos supostamente profissionalizantes que substituem a formação regular no Ensino Médio).

Até aí, nenhuma novidade. Os defensores da reforma original tentam manter tudo como está, os críticos tentam revogar a maior parte dos dispositivos da reforma e o governo federal equilibra os pratos, lançando mão de mecanismos de participação social para institucionalizar os conflitos. Protocolado o PL na Câmara, a mesa diretora aceitou o regime de urgência e designou o relator da matéria.

Só que o relator apontado é ninguém menos do que o deputado Mendonça Filho (União Brasil/PE). Isso mesmo: o ministro da educação que, ao lado de Michel Temer, assinou a Medida Provisória n. 746/2016 que se transformou na reforma do ensino médio que o atual PL pretende reformar. O pai da reforma original agora é relator do projeto de lei de reforma da reforma!

As primeiras notícias deram conta de que a designação gerou descontentamento no governo Lula. De fato, a base parlamentar petista tinha outros planos para a relatoria e compreende o significado político de colocar um dos maiores defensores do NEM para relatar um PL que, apesar de sustentar princípios da reforma de 2017, também representa o reconhecimento do fracasso das teses dos reformadores.

O séquito governista nas redes sociais já se precipitou a dizer que a culpa é toda de Arthur Lira, que, em um novo movimento para inviabilizar o governo Lula, teria indicado Mendonça para a relatoria. O governo, de mãos atadas, seria, pois, um mero refém das chantagens do centrão. Depois do Ministério do Esporte e da Caixa Econômica Federal, agora foi a vez de o relator do “novo NEM” ser capturado pela fisiocracia parlamentar. Aos que lutaram nos últimos anos pela revogação do NEM, restaria resignar-se e reconhecer os esforços do governo federal para a mitigação dos efeitos deletérios da reforma.

Quem atender ao pedido do presidente Lula (“um governo não precisa de tapinha nas costas, precisa ser cobrado”), porém, deve sentir-se obrigado a classificar essa justificativa como, no mínimo, ridícula.

Primeiro, porque parte significativa da base parlamentar do governo na Câmara ficou realmente indignada com a relatoria (ou seja, há distensões na base). Segundo, porque o União Brasil – partido de Mendonça Filho – também integra a base do governo (isto é, o relator não é um estranho no ninho). Terceiro, porque vastos setores do governo possuem afinidades programáticas com a reforma do Ensino Médio (a começar pelo ministro da Educação e por sua secretária-executiva, tão habitués quanto Mendonça nos eventos de fundações como a de Jorge Paulo Lemann). Quarto: apesar da tramitação em regime de urgência e das expectativas de tantos/as que lutaram pela revogação nas escolas e nas ruas, a reforma do Ensino Médio jamais esteve no centro das prioridades do governo Lula. Portanto, é muito improvável que Lira tenha se esforçado para impor uma derrota ao governo nesse âmbito.

Embora o destino da reforma do Ensino Médio seja um tema reconhecidamente em disputa tanto na base parlamentar do governo quanto dentro do Executivo, também é preciso reconhecer que determinados setores do governo não ficaram nem um pouco desconfortáveis com Mendonça Filho na relatoria do PL 5.230/2023. Alguns devem term inclusive, apoiado (em privado, evidentemente) a escolha do ex-ministro de Temer.

Mendoncinha, como é conhecido entre os mais chegados, é o álibi perfeito para escamotear tanto o corpo mole de importantes figuras do governo no enfrentamento a projetos educacionais elitistas quanto – o que é ainda mais grave – o seu inconfessável alinhamento ideológico a esses mesmos projetos. A presença do ex-ministro da Educação de Michel Temer na relatoria do PL é a desculpa perfeita para que o governo, tal qual a sua claque nas redes sociais, possa dizer ao final do processo: “vocês são testemunhas: nós tentamos”.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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