

Opinião
A questão evangélica
Parece que as esquerdas perderam a noção do que significa disputar a hegemonia política e ideológica no País


A recente rodada de pesquisas – Quaest, Ipec e Atlas – mostrou significativa queda na avaliação positiva do governo e de Lula, além de um avanço na rejeição. As declarações do presidente sobre Israel, a inflação de alimentos, percepção de que a economia não vai bem, o incômodo com a insegurança, a corrupção e a pobreza foram os principais temas indicados pelos institutos como causas do crescimento da desaprovação.
Segundo o Ipec, Lula e o governo perderam pontos em seu próprio eleitorado: os nordestinos, as mulheres, as pessoas negras e de baixa renda. O aumento mais expressivo da desaprovação deu-se entre os evangélicos. Desde dezembro, revela a Quaest, ela subiu 6 pontos, passando de 56% para 62%. A aprovação também caiu 6 pontos, passando de 41% para 35%.
Analistas sugerem que esse aumento da reprovação entre evangélicos pode ter se originado nas condenações que Lula fez aos massacres de crianças e mulheres que Israel perpetra em Gaza. De fato, os evangélicos radicais, principalmente nos EUA e no Brasil, têm fortes relações com a extrema-direita israelense, ligada a grupos de judeus ortodoxos e sionistas.
A vinculação de entidades radicais de direita com grupos religiosos conservadores não é nova. Nos últimos anos, com as crescentes polarizações ideológicas, essa relação vem se estreitando. O ato de apoio a Bolsonaro na Avenida Paulista, em 25 de fevereiro, evidenciou esse amálgama crescente entre ideologia extremista de direita e teologia evangélica. Michelle Bolsonaro e o pastor Silas Malafaia verbalizaram essa fusão.
O problema dessa fusão, que ataca os pilares laicos da democracia ocidental e traz ingredientes de manipulação ideológica e disseminação de ódio, pela via das estratégias de guerra santa e de guerra espiritual, tende a se aprofundar na política brasileira, pois em breve os evangélicos podem atingir 50% da população. Um olhar superficial sobre as repercussões desse fenômeno mostra que as esquerdas não têm estratégias para enfrentá-lo.
As gestões petistas sempre tentaram fazer acordos “por cima” com as cúpulas conservadoras que comandam as igrejas mais significativas: verbas públicas, isenções tributárias e políticas sociais. Esses pactos e concessões não funcionam. As cúpulas evangélicas são fiéis a si mesmas, às suas igrejas, aos seus projetos de poder e ao seu bolso, e não ao governo.
Mais que o governo, quem deveria ter estratégias de abordagem da questão evangélica são os partidos de esquerda. Eles não conseguirão enfrentar essa questão apenas por abordagens eleitorais e governamentais. Alguns líderes petistas propõem que o governo desfile um receituário de seus feitos econômicos e sociais junto aos evangélicos. Isto é, dizer-lhes que o governo dá acesso ao Bolsa Família, ao Farmácia Popular, ao Fies, aos Institutos Federais etc. É certo que o governo precisa fazer isso, mas junto a todos os públicos. Isso é, porém, insuficiente.
A crença marxista de petistas supõe que a materialidade econômica forma a consciência dos beneficiários dos programas do governo, principalmente dos mais pobres. É certo que existe uma interdeterminação dinâmica entre materialidade econômica e formas de consciência. Mas existe também a autonomia das formas de consciência, e é nesse terreno que ocorre a disputa da hegemonia ideológica, política, cultural e moral – incluindo as formas de consciência religiosa.
A extrema-direita prioriza o combate nesse terreno da hegemonia, disputando formas de consciência com valores conservadores e mobilizando afetos, notadamente o de ódio. As esquerdas abandonaram essa disputa para desfilar receituários. É sabido, contudo, que muitos dos beneficiários dos programas econômico-sociais do governo são antipetistas radicais.
Tome-se outro exemplo: antes de ser preso pela Lava Jato, Lula fez algumas caravanas pelo País. No município gaúcho de Passo Fundo, o comboio foi impedido de entrar na cidade por uma mobilização de ruralistas e de outros setores. Um dos grupos mais radicais contra Lula foram os estudantes do curso de Medicina de uma universidade federal criada no governo dele. Além de se mobilizar para impedir a entrada da caravana na cidade, publicaram uma violenta carta contra o então ex-presidente.
Parece que as esquerdas perderam a noção do que significa disputar a hegemonia política e ideológica. Por isso, não conseguem enfrentar a questão evangélica. Não percebem que precisam adentrar nos territórios dos evangélicos e lá permanecer, além de trazê-los para os partidos, permitindo que eles ascendam ao poder. Os evangélicos não serão conquistados apenas pela via eleitoral ou dos programas e acordos governamentais. •
Publicado na edição n° 1302 de CartaCapital, em 20 de março de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A questão evangélica’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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