Opinião

A quem serve a guerra na Ucrânia

Como bem assinalou o Papa, a guerra serve a mais de um império

Foto: AFP
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“O lirismo, para mim, faz parte do ar que eu respiro. Mas tem que ser real.”
Vinicius de Moraes.

Lá do céu, imagino o diplomata Vinicius de Moraes, aplaudindo o Papa Francisco por seu destemor diplomático.

Na semana passada, o Pontífice concedeu entrevista, reproduzida pelos principais jornais italianos, como “La Repubblica”, “La Stampa”, e “Corriere della Sera”. Aos jornalistas, Bergoglio disse que a guerra na Ucrânia é fomentada pelos interesses de vários “impérios”, não apenas da Rússia. O Santo Padre precisou: “…interesses imperiais, não apenas do império russo, mas de impérios de outros lugares.”

Claro e transparente como a água que brotou da rocha, como em Lourdes e Caravaggio.

Mais uma vez, Francisco demonstra ser o maior diplomata da atualidade: franco, ético e equilibrado; além de corajoso, profético e santo, pois coloca a verdade libertadora acima de qualquer interesse terreno.

Não foi à toa que Francisco citou Vinicius na Encíclica “Fratelli Tutti” (Todos Irmãos). De fato, só um homem com a sensibilidade de Bergoglio poderia sentir toda a profundidade do “Samba da Benção” de Vinicius: “…pois a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro nesta vida.”

Encontrar a justiça e a paz equivale a desencontrar a injustiça e o conflito.

De fato, como bem assinalou o Papa, a guerra na Ucrânia serve a mais de um império.

Em primeiro lugar, ao império estadunidense e ao seu instrumento militar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Com efeito, o presidente Biden acaba de anunciar para 2024 um orçamento militar de 842 bilhões de dólares, o maior da História, com a finalidade, inclusive, de “modernizar o arsenal nuclear”. Ou seja, o fim do mundo se aproximará cada vez mais.

Ao lado disso, a vetusta OTAN, cuja finalidade teria se esgotado com o fim do “Pacto de Varsóvia”, a aliança militar do Leste Europeu, reforçou-se com a retórica militar anti-russa. A promessa que o Ocidente fizera a Gorbachov de não ampliar a OTAN para leste foi acintosamente descumprida, tornando-se uma das causas principais da guerra na Ucrânia, como bem assinalara Francisco, em outra intervenção justíssima.

Ao contrário, no maior cemitério do mundo, o Mar Mediterrâneo, não cessamos de assistir aos piores e mais mortíferos naufrágios de imigrantes, que tentam fugir do inferno em que os ocidentais transformaram o Terceiro Mundo.

Vale notar que as travessias triplicaram no último ano, com inúmeros afundamentos, o último deles na costa da Calábria, causando 79 mortes.

A mesma Europa que se considera em condições de ser campeã em direitos humanos e democracia! Quanta hipocrisia!

No bom sentido, Lula, na semana passada, deu importante passo ao impor vistos a quem exige de nós: Estados Unidos da América, Canadá, Japão e Austrália.

A reciprocidade é regra básica da diplomacia, garantindo um mínimo de dignidade ao relacionamento externo.

Reforçar os princípios éticos de nossa política externa se faz cada vez mais necessário, visto o quadro de barbárie diplomática do Ocidente.

Sem legitimidade não poderemos enfrentar a selvageria: não contamos com as armas de que dispõem – inclusive nucleares – e não falemos de nossas forças armadas; só nos resta a legitimidade da ética, que fez de Francisco, chefe de estado de uma mínima cidade – a do Vaticano – o maior governante da Terra.

Como isso é importante para tentarmos freiar o holocausto final!

A imprensa do Norte está totalmente dominada pela propaganda de guerra, cuja primeira vítima, como já se disse, é a verdade.

A morte de palestinos por Israel é por ela legitimada, na medida em que o estado hebreu alegue serem terroristas. Parece não lhes ocorre minimamente que, ainda que esse fosse o caso, aqueles teriam direito a julgamento justo. Se a verdade é a primeira vítima da guerra, a ética é a segunda, demonstra-nos a imprensa ocidental.

Por aqui, a nossa não fica atrás na defesa de seus mesquinhos interesses de classe, chegando a dizer que o genocida “incorporou ao seu acervo pessoal” a propina, o roubo. Quanta hipocrisia também!

Destarte, como a política externa decorre da interna, as medidas éticas de busca da equidade entre homens e mulheres no Brasil, anunciadas pelo presidente Lula no 8 de março são importantíssimas, principalmente no que toca à paridade salarial, questão básica de justiça.

Ao lado disso, o aumento dos recursos para a alimentação escolar trará um triplo ganho para o país: maior condição nutricional para estudantes (para muitos essa é a principal, se não única refeição); melhor capacidade cognitiva; comercialização segura para a agricultura familiar, que produz 70% dos alimentos que consumimos.

Vale recordar que no Brasil, como na maioria dos países, no meio rural concentram-se os maiores índices de pobreza, estando 3/4 dos pobres do mundo no campo.

Infelizmente, muitas vezes também nós nos equivocamos. Se a ida do assessor especial do presidente a Caracas foi um grande acerto, depois das inúmeras provocações e ingerências do desgoverno passado nos assuntos internos da Venezuela, a criação de uma Alta Representante para Assuntos de Gênero no Ministério das Relações Exteriores pode duplicar competências. Segundo o Itamaraty, deverá: “participar de reuniões internacionais sobre os assuntos de gênero e atuará em articulação com outros ministérios para o avanço dessa agenda”.

Mas não há o Ministério da Mulher, especificamente para isso? Esse ministério não conta com assessoria internacional justamente para tanto, nos casos em que a ministra Cida Gonçalves não possa participar pessoalmente?

Na África, mulheres e meninas continuam a ser violentadas, sequestradas e escravizadas, por terem de caminhar quilômetros para buscarem água. O Brasil – o Itamaraty e sua Agência Brasileira de Cooperação – não estaria investindo melhor os nossos recursos na cooperação humanitária, para levar água a essas comunidades às quais tanto devemos? Não sentimos culpa pela escravização de que o país vergonhosamente se beneficiou? Não seria melhor sempre nos pautarmos pela ética em toda e qualquer política pública, inclusive a externa?

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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