Opinião

A posse de Lula resgatou o melhor de nossa memória

A subida da rampa por pessoas que estiveram com ele nos momentos de maior agrura foi muito simbólica

Foto: Sergio Lima / AFP
Apoie Siga-nos no

“Amar é querer estar perto, se longe; e mais perto, se perto.”
Vinicius de Moraes.

A experiência de viajar é única.

Ver as coisas com os próprios olhos, sentir o ar, a energia de cada lugar.

Tudo fica mais intenso quando revemos: pessoas e lugares.

Os sítios trazem memórias da infância e adolescência, mas são as pessoas que nos permitem uma viagem no tempo e no espaço.

Conversas renovadas, entendimentos e conhecimentos.

No Natal, fui à cidade dos meus avós paternos, cujo nome vou declinar.

Minha tia me informara que o túmulo de minha avó e tios necessitava de reparos.

Fui, então, à administração do cemitério para me informar sobre uma marmoraria que pudesse fazer o trabalho.

Para minha surpresa absoluta, fui recebido por uma funcionária transexual.

Foi a primeira vez na vida – e tenho 63 anos – que isso me aconteceu.

Sempre dei como exemplo do nosso preconceito cultural o fato de que ninguém jamais fora atendido por servidora pública trans.

Pois bem, naquela pequena cidade do Pontal do Paranapanema existe uma funcionária pública trans, ainda que alocada ao cemitério, endereço pouco charmoso.

Demais, extremamente simpática e prestativa.

Outra surpresa boa para os citadinos sempre preconceituosos com o interior profundo: uma das Igrejas matrizes (são duas e me refiro à mais popular) tem a melhor pastoral da acolhida, que não têm sequer as igrejas mais ricas da capital. Na verdade, sequer no exterior (Roma incluída) eu vira algo tão singelo, acolhedor e funcional.

Todas essas belas vivências me recordaram “Vila Sapo” (editora Todavia), de José Falero: “Tu nunca quer mostrar como tu realmente é pra qualquer um. Tu só mostra quem tu realmente é pras pessoas com quem tu te sente à vontade; quando tu não tá com pessoas assim, tu fica constantemente ocultando teu jeito de ser e pá. E isso cansa, pai. Isso cansa, como remar pra se locomover no meio do oceano – ou, mais apropriadamente, cansa como bater braços e pernas pra se locomover no meio do oceano. Daí a ideia de terra firme: uma vez na companhia de alguém com quem tu te sente à vontade, aí já era, tu não precisa mais ficar te esforçando, te ocultando, tu não precisa mais fazer nada: tu tá em terra firme, é só relaxar e se deixar ser; mais nada.”

A posse do presidente Lula também foi um reviver o melhor de nossa memória. A subida da rampa por pessoas que estiveram com ele nos momentos de maior agrura foi muito simbólica, assim como a imposição da faixa presidencial por uma mulher negra, catadora, perfeita representante das pessoas mais oprimidas desta sociedade.

Saímos de tenebrosa noite. O demônio fuguira, temeroso da luz.

Foi se juntar aos maus, pois como Falero escreve na citada obra: “O que um coração cruel e covarde mais quer, mais deseja, mais espera é justamente a oportunidade ideal para aliar-se a outros corações igualmente cruéis e covardes, de modo que possa regozijar-se na prática atroz sem o medo de ser execrado sozinho.”

Como o abraço de Trump a Bolsonaro em Miami poderia ser melhor descrito?

De fato, sempre nas palavras de Falero, os conselhos para jovens periféricos serve tão perfeitamente para países, igualmente distantes do centro rico: “- Olha aqui, meu, olha bem o que eu vou dizer pra vocês: tá todo o mundo contra vocês, tá ligado? Ceis sobem nos bonde aí, e o pessoal não gosta muito. Ou ceis acham que o pessoal gosta? Tem um monte de pau no cu por aí, mano, gente que não quer que vocês façam o corre de vocês, e que vai gostar ainda menos quando vocês crescerem. Então, resumindo, é o mundo contra vocês, mano. Pra apoiar vocês, não vai ter ninguém. E aí ceis vão ficar brigando, ainda? Não, mano! Ceis têm que se unir, ceis têm que ficar junto e de boa, ceis têm que um apoiar o outro. Aperta as mãos aí, quero ver. Vamo, aperta as mãos.”

A revogação dos decretos armamentistas de Bolsonaro já no dia da posse foi um gesto concreto e simbólico de Lula, em direção da pacificação, no dia mundial da paz.

Falero resume as pulsões de morte: “Tem um monte de gente querendo a morte hoje em dia, das mais variadas maneiras. A vida tá fora de moda.” Estava, já podemos, felizmente, dizer hoje.

Ainda sobre os encontros, Falero agrega: “Quando eu encontro a minha irmã depois de algum tempo sem ver ela, ou quando eu encontro a minha mãe depois de algum tempo sem ver ela, ou quando eu encontro algum bom amigo ou alguma boa amiga depois de algum tempo sem ver ele ou ela, me vem na cabeça a ideia de terra firme. É que andar por aí, entre pessoas estranhas, ou entre pessoas com quem a gente não tem tanta intimidade assim, isso implica em fingir o tempo todo, em representar.”

Que linda foto do ministério empossado ontem. Todos como são, sem representações de ternos escuros e bolsos fundos, como os sinistros anteriores.

Com efeito a cerimônia da posse presidencial recordou a citação que David Benner faz de James Olthuis, em “A entrega total do amor” (Edições Loyola): “O amor não é, em primeiro lugar e antes de tudo, fruto de nossas ações. O amor é fundamentalmente aquilo que somos…Amar é a essência do ser humano, o tecido que nos une à realidade, o oxigênio da vida.”

A esse respeito, o próprio Benner complementa: “Nossa capacidade de nos importar profundamente com os outros e de colocar os interesses deles acima dos nossos é o clímax de nossa evolução espiritual.”

Livres do mal, poderemos evoluir como pessoas, como comunidade e país. Devemos fazê-lo, pois o mundo todo espera isso de nós.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo