Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

A páscoa da pandemia e o que o liberalismo tem a ver com isso

A pequena guerra do trio pascoal não é isolada e muito menos um bom indício de futuro de nossa democracia

André Mendonça, Kassio Nunes Marques e Augusto Aras (Fotos: Fabio Rodrigues Pozzebom/Fellipe Sampaio/Rosinei Coutinho)
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O ministro do STF Kassio Nunes Marques, o procurador-geral da República Augusto Aras e o advogado-geral da união André Mendonça formaram uma espécie de “trinca pascoal” para nos brindar com uma espécie de guerra entre Religião e Estado – no seio do próprio Estado – na primeira semana deste nosso abril de tragédias.

A razão, como todos sabem, foi um embate sobre decisões de proibição ou liberação de cultos presenciais em igrejas no meio de uma escalada de mortes pela Covid-19 e colapso no sistema de saúde. André Mendonça chegou a proferir a seguinte frase em julgamento da respectiva ação no STF: “[…] os verdadeiros cristãos não estão dispostos jamais a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto”. Marques e Aras, ainda que com estilos diferentes, não se diferenciaram do colega no apelo teocêntrico de seus argumentos.

Obviamente, há um elo notório entre os três atores dessa história: o alinhamento com o governo Bolsonaro. No entanto, creio que o episódio nos requisite mais atenção por ser mais complexo e complicado do que simples interesses políticos e privados naturais ao jogo da política democrática.

Como se sabe, o liberalismo, que dá origem à democracia moderna quando se funde a uma forma democrática de governo, é uma doutrina filosófica ocupada em definir os limites e funções do Estado contra o exercício absoluto do poder por meio da criação de um sistema de direitos e liberdades. Mais: trata-se de uma corrente de pensamento da filosofia política calcada, originalmente, num ideal (normativo) igualitário de distribuição de direitos que confere aos sujeitos a proteção contra a tirania de governantes ou de qualquer outro. É de onde se origina aquilo que ideologias fascistas mais odeiam: os Direitos Humanos. Mas quero chamar atenção para um outro elemento fundamental.

O liberalismo tem um outro componente essencial: o separatismo. Aos afoitos, peço calma. Não se trata dos separatismos nacionalistas, xenofóbicos, racialistas ou algo que o valha. Muito menos diz respeito à interdição de comunhões e coletivos, visto que é também aí que se cria as liberdades de associação e reunião. Da mesma forma, o individualismo liberal não é sinônimo de individualismo egocêntrico em que a coletividade não existe. Ao contrário: é também nesse bojo que a noção de bem comum é construída.

Bem comum este que, ao menos sob o ponto de vista liberal, demonstra que Mendonça trata de tudo em sua fala, menos das liberdades sob o ponto de vista da tradição liberal na medida em que estas não são absolutas, mas relativas às liberdades e direitos do outro: como o direito à vida. Pode-se até ser um idiota (no sentido etimológico do termo) e ter o direito de sê-lo contanto que essa idiotice não prejudique as liberdades alheias, já dizia John Locke lá no século XVII. Não é, portanto, o caso quando se quer permitir aglomerações em espaços fechados em meio a uma pandemia que já matou mais 370 mil pessoas no país.

Trata-se do liberalismo como arte da separação que o distingue das épocas que o precedem nas quais as esferas em que se formavam os centros de poder eram confundidas umas com as outras. Como explica o mestre Norberto Bobbio em referência ao filósofo político Michael Walzer, o liberalismo é um universo de muralhas em que cada uma das quais cria uma nova liberdade. Eis o nosso ponto: as muralhas que foram erguidas entre a Igreja e o Estado permitiram a liberdade religiosa, o muro que é elevado entre a Igreja e o Estado de um lado, e a universidade, de outro, é o que permitiu a liberdade de pesquisa e de pensamento em geral e assim sucessivamente, como a própria separação da sociedade civil do Estado que constrói a liberdade econômica.

O que o episódio relatado no início dessa coluna parece revelar como lição para reflexões sobre o nosso futuro é quantos desses muros erguidos, que nos garantem liberdades, direitos, diversidade, pluralismo e garantias de existência de minorias políticas ainda estão de pé e, uma vez estando, sob quais condições estariam. E não se trata apenas de liberdade de crença, mas o quanto preceitos e valores religiosos, uma vez representados nas instâncias de decisão coletiva, tornam-se uma agenda política com capacidade de reconfigurar o Estado à imagem e semelhança dos princípios, valores e práticas de instituições religiosas.

É óbvio que não podemos nos dar ao direito de fazer generalizações e, com base nelas, perseguir e discriminar religiões e religiosos se quisermos ser coerentes com os princípios liberais que protegem todos nós: dos ateus aos agnósticos, passando pelas pessoas de fé. No entanto, não é possível olhar para muitas das políticas tocadas pelo governo Bolsonaro e a presença de figuras como Nunes, Aras e Mendonça nos demais Poderes e órgãos do Estado sem encarar o fato de que um dos fenômenos mais vistosos de nossos tecidos social e político brasileiros é a ascensão dos evangélicos pentecostais e neopentecostais – ou ao menos de princípios, ideais e ideologias hiperrepresentadas por esses segmentos.

Como faz questão de salientar o especialista no assunto, Juliano Spyer, essas denominações evangélicas são responsáveis por consideráveis revoluções – para muitos silenciosas – em estratos sociais brasileiros variados, mas principalmente nos patamares de baixa renda. Isso porque conduzem à ascensão socioeconômica por meio da redução do alcoolismo e, consequentemente, da violência doméstica, do fortalecimento da autoestima, da disciplina para o trabalho, do aumento do investimento familiar em educação, da profissionalização, dos cuidados com a saúde, da formação de redes de cooperação mútuas que abrem caminho para o mundo do trabalho, sem mencionar o fato de que as próprias atuações em suas igrejas lhes podem conferir um ofício profissional – ainda que, obviamente, isso tudo não seja suficiente para explicar a transcendência dos atos de fé. Basicamente, proporcionam o que a ausência do Estado lhes nega.

Há outro elemento importante nessa ética protestante pentecostal e neopentecostal que nos leva à questão central deste texto: a própria compreensão de que os bens materiais são obras divinas postas no mundo para o usufruto da criatura merecedora conduz, inevitavelmente, aos estímulo à participação (legítima, por que não?) em outras instâncias da vida apartadas da vida religiosa, como a política. Do mesmo modo, há um fenômeno cultural e também de ordem comunicacional: a própria participação no debate público alargado proporcionado pelas redes digitais de comunicação insere, cada vez mais, o pensamento religioso evangélico hegemônico nas conversações cotidianas sobre temas de interesse público. Gera atenção, interesse, adesão e comunhão. O problema, no entanto, está naquilo que vem acompanhado com esse fenômeno extraordinário: o ultraconservadorismo.

É verdade que a representação política evangélica é proporcionalmente maior do que a quantidade de evangélicos presentes na população brasileira. Da mesma forma que a quase totalidade desses representantes não coadunam com princípios e valores liberais como a tolerância à diferença (ou progressistas, como queiram). No entanto, é igualmente verdade que os adeptos das denominações evangélicas crescem a um ponto em que as estimativas os colocam em maior quantidade que os católicos brasileiros daqui a mais ou menos 10 anos.

Mais dados: cerca de 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro no segundo turno de 2018 e esse segmento continua sendo o que abriga o maior número de pessoas que ainda aprova e avalia com ótimo/bom a atual gestão, como mostra a última pesquisa Exame/Idea. Por uma razão que considero simples: nunca nenhum outro presidente conseguiu transformar uma disputa político-eleitoral numa disputa moral como Bolsonaro conseguiu. Como mostra estudo de Lucio R. Rennó, o voto em Bolsonaro teve forte correlação com questões morais, como casamento gay, adoção por casais homossexuais, ensino religioso nas escolas, dentre outras. Fundamental incluir, ainda, a sinalização a esses grupos com embalagem ultraconservadora sobre a suposta existência de condutas moralmente degradantes como a pedofilia e o incesto na conduta de adversários, a falácia da ideologia de gênero ensinada nas escolas, as caricaturas sobre as lutas pelos direitos das mulheres e justiça de gênero e a própria alegação da doutrinação ideológica na educação.

O conservadorismo ou ultracoservadorismo brasileiros, por óbvio, não se resume a religiosos evangélicos ou mesmo religiosos. Mas é inegável que a maior força de tração social e política desse fenômeno na atualidade advém dessas denominações religiosas. Os dados de adesão a Bolsonaro não mentem. Do mesmo jeito como demonstram as estratégias de diversionismo do presidente, quando acuado: o apelo é sempre para sua base conservadora de apoio por meio de ofensas e insultos a minorias ou fantasmagorias do pensamento conservador/reacionário. Não é à toa, como foi noticiado nesta semana, que Bolsonaro já estuda retomar sua agenda moral conservadora de olhos nos evangélicos em razão da ascensão das intenções de voto em Lula.

Nunes, Aras e Mendonça não estão sozinhos. Nos três poderes do Estado já não nos faltam os que se recusam a preconizar os fundamentos liberais que permitem uma vida coletiva amparada pela pluralidade, pela diversidade, pela tolerância e pelo secularismo que garantem, fundamentalmente, a existência e exercício de liberdades e garantias fundamentais, como as religiosas.

A pequena guerra do trio pascoal não é isolada e muito menos um bom indício de futuro de nossa democracia, tal como – e não é à toa – o é o atual governo que temos. Tendo a achar que o Brasil precisa colocar entre suas prioridades a discussão sobre as fundações de um contrato social que se sobreponha a avanços que corroam o que ainda temos de liberalismo sob pena de, como alerta Yascha Mounk, estarmos no caminho de criação de uma democracia sem liberalismo.

Ou seja, um Estado que garante a participação política de todos e todas – em eleições, por exemplo – mas não confere liberdades e garantias fundamentais ao conjunto de seus cidadãos e cidadãs. Esse cenário pode parecer improvável ou mesmo distante para muitos, mas Nunes, Aras e Mendonça sugeriram o oposto, ainda que “não tenha sido dessa vez”. Mas quanto tempo as instituições poderão resistir? A quantas indicações para o STF ou a quantos governos como o atual? Ou melhor: quanto tempo mais as instituições resistirão a mudanças que podem desfigurar seus alicerces liberais? Assembléias municpais Brasil afora já contam com parlamentares que citam mais a bíblia do que a Constituição do país.

É preciso estar atento a mudanças degenerativas das democracias liberais, ou seja, para transformações que se dão por meio de processos incrementais e não por manobras vistosas e grandiosas, como alerta David Runciman em seu Como as Democracias Chegam ao Fim, afinal, instituições podem ser suficientemente porosas a mudanças graduais no âmbito da cultura e da política. O momento parece oportuno para se pensar a respeito e não será possível fazê-lo sem considerar e envolver os próprios evangélicos nesse debate, afinal, como todos nós dentro da República, eles importam.

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