

Opinião
A Geni da saúde
Basta as eleições se aproximarem para o setor privado e seus candidatos jogarem a culpa da crise da saúde na Tabela SUS. Mas esta é uma falsa vilã


A cada eleição, entra em debate a Tabela SUS. Dirigentes do setor privado e seus candidatos bradam que sua defasagem é a principal causa das mazelas da saúde. De fato, milhões de brasileiros padecem em filas de espera para consultas, exames e cirurgias. Mas será que a vilã é mesmo a Tabela SUS?
A primeira coisa a ser dita é que a tabela deixou de ter a importância que lhe é atribuída. Ao longo dos governos Lula e Dilma, alguns procedimentos relevantes foram, de forma estratégica, atualizados na tabela. Mas, de 2016 para cá, continuam praticamente congelados.
Desde 2004, foram feitas mudanças na lógica de pagamento dos prestadores do SUS. A tabela, herança do Inamps incorporada ao SUS no governo Collor, em 1991, deixou de ser a única e a mais importante forma de pagamento.
Isso foi feito porque a tabela gera muitas distorções. Trata-se de uma ferramenta superada, que induz à escolha seletiva dos procedimentos mais bem remunerados. Ao não precificar e pagar o conjunto de ações necessárias para os cuidados de um paciente, ela cria situações paradoxais.
Somos campeões em transplantes, mas não garantimos a biópsia, fundamental para o diagnóstico. Ofertamos hemodiálise, mas não consultas com nefrologistas, que evitariam a doença renal crônica. Fazemos cirurgias de catarata, mas muitos seguem sem resolver um simples problema de refração. Cirurgias ortopédicas simples demoram muito, mas não tanto quanto as que exigem próteses. Esses são exemplos de situações que geram filas e iniquidade.
O que mudou a partir de 2004 é que se estabeleceu a contratualização no SUS. Compromissos e metas de produtividade e qualidade a serem cumpridas pelos hospitais e pelos gestores foram firmados entre as partes. O contrato passou a ser remunerado por um orçamento global, com valores previamente definidos, pagos mensalmente. Com isso, o pagamento passou a ser orientado pelo cumprimento de metas, independentemente da tabela, permitindo ao gestor do SUS pagar pelo que a população mais precisa, corrigindo as inadequações provocadas pelo uso, histórico, da tabela SUS.
Em 2012, os hospitais filantrópicos que atendiam exclusivamente o SUS receberam incentivo adicional de 968,6 milhões de reais. Em 2014, o ministério elevou de 25% para 50% o incentivo pago aos atendimentos de média e alta complexidade, com impacto de 1,7 bilhão de reais.
Em 2015, esse setor foi ainda contemplado com o Incentivo de Adesão à Contratualização (IAC), no valor global de 763,2 milhões de reais. Em 2016, 1.057 hospitais com contratos firmados com o SUS (90% deles filantrópicos) recebiam o IAC, com impacto anual de 2,4 bilhões de reais – recursos esses descolados da tabela.
Sem revisão de contratos a partir do governo Temer, parte do setor privado voltou a reivindicar aumento na tabela, mesmo reconhecendo ser mais vantajosa a contratualização – uma vez que os compromissos são definidos de antemão e, uma vez cumpridos, garantem ao hospital o pagamento previsto em contrato.
Mas o fato é que é imperioso substituir, de forma definitiva, a Tabela do SUS. Para isso será essencial garantir remuneração adequada, feita de forma inteligente e moderna, que seja boa para todas as partes.
Como então explicar a crise no setor? Seus determinantes são múltiplos e complexos, a começar pelas péssimas condições de vida e a brutal desigualdade social, mas um problema central é o histórico subfinanciamento do SUS.
Em 2002, o gasto federal em ações e serviços públicos de saúde, a preços de 2016, descontada a inflação, de acordo com o IPCA, passou de 61,2 bilhões de reais (2002) para 106,2 bilhões (2016), um crescimento de 74% – correspondente, em média, a 4% ao ano.
O golpe de 2016 e a emenda do teto EC-95 resultaram, no entanto, no efetivo desfinanciamento do SUS. Com um gasto público em saúde de apenas 3,8 reais por habitante/dia, é impossível garantir a precificação justa, ainda que se qualifique a gestão setorial.
E tudo pode piorar. A Lei Orçamentária Anual de 2023 prevê que o orçamento do Ministério da Saúde em ASPS será de 149,3 bilhões de reais. Em valores nominais é menor do que o previsto para 2022 (150,5 bilhões de reais), sem contar que estão embutidos 10,4 bilhões de reais de orçamento secreto.
Pode-se continuar jogando pedra na tabela, a Geni da saúde, mas o que se espera é que o próximo governo financie adequadamente o SUS e institua mecanismos modernos, eficientes e transparentes de remuneração dos prestadores públicos e privados, visando melhorar a qualidade do atendimento à população. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1226 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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