Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

A Encarnação, o Significado do Natal

Tal como nos personagens do Satyricon, percebo nos católicos de hoje a nostalgia do Cristo que não voltou

Papa Francisco beija uma escultura do menino Jesus na Basílica de São Pedro, no Vaticano. Foto: Filippo MONTEFORTE / AFP
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“Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessemos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços.” (Evangelii Gaudium, Papa Francisco)

O papa Francisco ofereceu aos católicos e cristãos a Primeira Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”. Assim como as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII, Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII, a exortação apostólica de Francisco, um texto cuidadosamente construído, aborda as vicissitudes e alegrias da vida cristã no mundo contemporâneo.

A mídia lhe dedicou editoriais medíocres e comentários banais, como os da revista “The Economist”. Nas profundezas de sua ignorância histórica e religiosa, a revista escava nas palavras do papa uma argumentação contra os males do capitalismo, o que abriria espaço para o avanço das perversidades dos sistemas sociais e econômicos totalitários.

Os olhares do nosso tempo perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão tantas vezes repetida no texto do papa e incrustrada nas origens do cristianismo. Jacques Le Goff diz com razão que no cristianismo primitivo e no judaísmo a eternidade não irrompia no tempo (abstrato) para “vencê-lo”. A eternidade não é a “ausência do tempo”, mas a dilatação do tempo ao infinito.

Depois da encarnação, a escatologia judaico-cristã sofre uma transmutação: o tempo adquire uma dimensão histórica. Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela ressurreição. “Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços”.

Em um artigo sobre João XXIII, lamentei que homens e mulheres de hoje falam descuidadamente da herança judaico-cristã como se seus valores estivessem desde sempre incrustrados na nossa natureza, se é que temos uma. O cristianismo – o mistério libertador da Encarnação – foi um divisor de águas na história da humanidade, um movimento revolucionário, nascido das crueldades e das sabedorias do mundo grego-romano.

Em uma entrevista sobre seu filme Satyricon, Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens no crepúsculo do império romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das concupiscências e as angustias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”.

Tal como nos personagens do Satyricon, percebo nos católicos de hoje a nostalgia do Cristo que não voltou. Mas, creia-me o leitor, ele já esteve entre nós encarnado na simplicidade e na sabedoria camponesa de João XXIII e parece ter retornado nos exemplos de Francisco.

No medievo, a Igreja transformou-se numa imponente hierarquia e os poderes do mundo material frequentemente atropelaram as palavras dos evangelhos. Não vou aborrecer os leitores com relatos das crises que pontilharam a história da Igreja, eivada de cismas e heresias, dividida pela reforma, maculada pela inquisição, atormentada por Copérnico e Galileu.

João XXIII escreveu na Mater et Magistra: a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as almas e de fazê-las participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias épocas.

Francisco rejeita as formas de religiosidade que fazem recuar o espírito para os recônditos do individualismo, uma espécie de “consumismo do sagrado” que ignora os fundamentos comunitários do cristianismo. “Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus”. Um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro é a negação do cristianismo.

No seu livro “Homens em tempos sombrios” Hannah Arendt dedicou um capítulo a João XXIII intitulado “Angelo Giuseppe Roncalli: Um cristão no trono de São Pedro de 1958 a 1963”. Nesse ensaio, Arendt entre outras narrativas a respeito de Angelo Roncalli, conta o depoimento colhido de uma camareira do hotel em que se hospedava em Roma: “Senhora”, disse ela, “esse papa era um verdadeiro cristão. Como podia ser isso? E como aconteceu que um verdadeiro cristão se sentasse no trono de São Pedro? Ele primeiro não teve de ser indicado bispo e arcebispo, e cardeal, até finalmente ser eleito como papa? Ninguém tinha consciência do que ele era?”

Felizmente, ninguém percebeu.

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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