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João XXIII

Hannah Arendt registrou o depoimento de uma camareira sobre Roncalli: “Como um verdadeiro cristão se sentou no trono de São Pedro?”

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Numa entrevista sobre seu filme Satyricon, Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens. As máscaras se debatiam entre o tédio das concupiscências e as angústias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”.

Os homens e as mulheres estão habituados a falar descuidadamente da herança judaico-cristã como se seus valores estivessem desde sempre incrustrados na nossa natureza, se é que temos uma. O cristianismo foi um divisor de águas na história da humanidade, um movimento revolucionário, nascido das crueldades e das sabedorias do mundo grego-romano.

Não por acaso a palavra de Cristo encontrou terreno fértil no espírito dos pobres, dos fracos, dos escravos. Até a alforria do Édito de Milão, promulgado pelo Imperador Constantino, a Igreja floresceu entre a vida nas catacumbas e as perseguições sanguinárias como as de Nero e Diocleciano.

No medievo, a Igreja transformou-se numa imponente hierarquia e os poderes do mundo material frequentemente atropelaram as palavras dos Evangelhos. Não vou aborrecer os leitores com relatos das crises que pontilharam a história da Igreja, eivada de cismas e  heresias, dividida pela Reforma, maculada pela Inquisição, atormentada por Copérnico e Galileu.

Tal como nos personagens de Satyricon, percebo nos católicos de hoje a nostalgia do Cristo que não voltou. Mas, creia-me o leitor, ele esteve entre nós encarnado na simplicidade e na sabedoria camponesa de João XXIII, que no seu projeto do Concílio Vaticano II falou por meio das encíclicas Mater et Magistra e Pacem in Terris.

Na abertura da primeira podia-se ler: a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as almas e de fazê-las participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias épocas. Interessante esse “dentro do condicionalismo das várias épocas”.

Na Pacem in Terris, Roncalli escreveu: O progresso da ciência e as invenções da técnica evidenciam que reina uma ordem maravilhosa nos seres vivos e nas forças da natureza. Testemunham, outrossim, a dignidade do homem capaz de desvendar essa ordem e de produzir os meios adequados para dominar essas forças, canalizando-as em seu proveito.

E, ao nos dispormos a tratar dos direitos do homem, advertimos, de início, que o ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida: tais são especialmente o alimento, o vestuário, a moradia, o repouso, a assistência sanitária, os serviços sociais indispensáveis. Segue-se daí que a pessoa tem também o direito de ser amparada em caso de doença, de invalidez, de viuvez, de velhice, de desemprego forçado, e em qualquer outro caso de privação dos meios de sustento por circunstâncias independentes de sua vontade.

Um historiador das religiões afirmou que o Concílio Vaticano II foi um fracasso. Dentro e fora da Igreja realmente o fracasso foi estrondoso. Depois de João XXIII a Igreja voltou ao controle da hierarquia tão corrupta quanto desinteressada das questões da fé e da vida dos católicos. E o mundo? O mundo que emergiu da Segunda Grande Guerra sob os auspícios da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e das políticas de defesa dos cidadãos contra as tropelias do mercado, entregou-se à libações do economicismo neoliberal. Esse contubérnio soterrou lentamente os propósitos e ensinamentos da Mater et Magistra e da Pacem in Terris.

No seu livro Homens em Tempos Sombrios, Hannah Arendt dedicou um capítulo a João XXIII intitulado  “Angelo Giuseppe Roncalli: Um cristão no trono de São Pedro de 1958 a 1963.” Nesse ensaio, Arendt, entre outras narrativas a respeito de Angelo Roncalli, conta o depoimento colhido de uma camareira do hotel em que se hospedava em  Roma. “Senhora”, disse ela, “esse papa era um verdadeiro cristão. Como podia ser isso? E como aconteceu que um verdadeiro cristão se sentasse no trono de São Pedro? Ele primeiro não teve de ser indicado bispo e arcebispo, e cardeal, até ser finalmente eleito como papa? Ninguém tinha consciência do que ele era?”

Felizmente, ninguém percebeu.

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